MIDAS [último capítulo] - Sonia Regina

CAPITULO 25 (Um trecho)


Ouvindo lindezas. 

Procurava, com gestos que não eram seus conhecidos, tocar as coisas. Experimentava, simplesmente.
Havia o que fazer. Por si. Alguma praticidade que independia de fé ou de juventude.

*

“Oi, querido. Olha, obrigada, mas não precisa me buscar. Irei até lá sozinha.”
“... !”
“Sim, vou. Vou só dormir mais um tico, fui dormir passava das três.”
Mas levantou-se; o sono se fora. Sempre era frio naquela época, pela manhã. Gostava. Gostava de desejar o sol.
Deu uma volta pelo jardim molhado. Pés nus, a grama a lhe fazer cócegas, os cabelos se arrepiando. Não a incomodava, fazia parte: era o rumor da paisagem.
O carro coberto de sereno, fora da garagem. Sereno ou orvalho?
“Orvalho é mais consistente, sereno é coisa mais branda”, ensinara-lhe a mãe.
As gotas eram consistentes. Peroladas, transparentes... com alguma brandura. Nenhuma avaliação importava mais do que debruçar a alma sobre aquele ressoar: ouvia-as na sua lindeza.


Não obscuras: com clareza e brilho próprio

Os escritos de Luís Miguel Nava a faziam imaginar.
O texto “O Prego” lhe lembrava uma sala branca, vazia, imensa pela quantidade de luz, transbordando pelas janelas.
À porta, alguém. Esse alguém seria o que “cravava cuidadosamente um prego na parede, quando pressentiu que, como água dum cano que se rompesse, o futuro poderia jorrar de súbito na cal, uma substância na aparência cristalina mas em cujo seio as formas do presente se diluiriam todas, como se, com os seus contornos, igualmente se perdesse o seu sentido, e um sol se deslocasse, por pouco que fosse, do presente para o futuro, se esvaziasse então no céu, deixando atrás de si uma cicatriz imensa.” Assim escrevera Luís Miguel Nava aquilo que ela gostaria de ter escrito.

*

Excetuando as cartas, Midas era agora de poucas palavras. Talvez por isso elas tivessem algum poder: vinham sempre com muita força, fossem faladas ou escritas. Muitas vezes densas, como as imagens de um sonho. Secretas, como uma seita. Ocultas, como um tesouro. Enigmáticas, como as palavras de uma esfinge, guardavam um mistério que não pedia para ser desvelado. Não eram obscuras, tinham clareza e brilho próprio.
Sonia Regina


capítulo 25 integral


 
Imagem: Andrew Tolsma





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