O POETA CÉTICO - Gustavo Bernardo




Publicado originalmente em
José Luís Jobim & Silvano Peloso (orgs). Identidade e literatura.
Rio de Janeiro / Roma: Universidade do Estado do Rio de Janeiro /
Università di Roma "La Sapienza", 2007.





Eu sei quem sou? O poeta sabe quem é o poeta?


A identidade é um conceito necessário, tanto que estamos trabalhando com ele, mas, ao mesmo tempo, bastante problemático: as pessoas são idênticas a quê – ou a que modelo? Se tomarmos o conceito ao pé da letra, veremos que “ter uma identidade” implica ser idêntico a alguma outra coisa, por exemplo a um modelo. No entanto, quando nos referimos ao termo, pensamos justo o oposto: “ter uma identidade” implicaria ser único e original, ser aquele que ninguém mais pode ser. Esta é a aporia da identidade, contida no próprio conceito.

Saber quem se é mostra-se a mãe de todas as dúvidas, exatamente aquela que Descartes tentou resolver para não ter mais dúvidas. Se sei quem sou, posso saber o que é o mundo, logo, posso conhecer. Se não sei nem quem eu sou, como posso conhecer qualquer outra coisa?

Na filosofia, o ceticismo enfrenta o problema mantendo-o como problema, isto é, suspendendo o juízo e continuando a investigar. Na poesia, o poeta enfrenta o problema tanto pelas bordas quanto pelas entrelinhas, igualmente evitando resolvê-lo. Na verdade, este problema é que o define como poeta.

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Carlos Drummond de Andrade escreveu na terceira pessoa muitas “orelhas” dos seus próprios livros. Esta prática é mais comum do que parece: o editor, sem saber a quem pedir a “orelha”, acaba solicitando-a ao próprio autor, certo de que ele saberá vender o seu peixe. O Drummond orelhista, no entanto, via o poeta e prosador Drummond com certa distância, como se não soubesse bem quem era este que se via. Dessa maneira, evitava elogios desnecessários a si mesmo.

Na “orelha” de Passeios na ilha, por exemplo, Drummond comenta a ironia de Drummond: “sua ironia, porém, nunca é destruidora e reflete antes a serenidade de quem, por muito ter visto e ouvido, não cultiva ilusões, mas compreende-as no próximo”. Na “orelha” de Lição de coisas, Drummond reforça o caráter desiludido de Drummond: “o autor participante de Rosa do Povo, a quem os acontecimentos acabaram entediando, sente-se de novo ofendido por eles, e, sem motivos para esperança, usa entretanto essa extraordinária palavra, talvez para que ela não seja de todo abolida de um texto de nossa época”.

De maneira anônima, como convém, o poeta chama a atenção para o ceticismo recorrente do próprio poeta, que duvida metodicamente da própria literatura: “novidade em literatura costuma surgir envolta em naftalina”.[1] Este ceticismo combina perfeitamente com a ironia que, para ser efetiva, é sempre auto-ironia e duvida continuamente dos outros, da realidade e, principalmente, de si mesmo. Drummond também diria, em outro momento: “a minha obra é falha, podia ser melhor. Não teve um desenvolvimento assim consciente, lógico. Fui levado pela intuição e pelo instinto, pelas emoções do momento, e não acredito muito na validade do que fiz”.


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