sem razão

sonia regina e jorge vicente







 







1.

as noites de primavera parecem amornadas
pelo fogo das águas douradas sem razão

ventos se divertem, o sopro não salga o olhar

enxergar é ver além daquilo que se mostra;
a percepção intui, não requer explicação.


sonia regina


2.

nada requer explicação
o poema não existe
e o que resta de nós
apenas do nosso corpo é:

a alma fica no lugar calmo
da cama, onde a noite não
se escuta e onde a cicuta
mais não é do que um pássaro
sem asas.


jorge vicente


3.

nada requer explicação

brilha o carmim nas veias
e apenas dorme na alma
a angústia

do negror da asa quebrada
vem a noite, a criança chora
a perda da ilusão do poema


sonia regina


4.

nunca a criança chora
e nunca o poema tem lágrimas:
apenas palavras, signos d'água
e de tecido branco.

a não ser assim, como poderia
a nau ter navegado e ter surgido
no astro da noite, na alvorada
que se quer frágil mas que conta
a história dos homens e dos peixes.


jorge vicente

5.

o poema diz, pergunta, duvida:
incessantemente

para ir mais além

desse momento, da utopia,
da realidade concreta,
da própria ação cotidiana

impregnado da invenção de cada um,
a par do mágico e do sagrado


sonia regina


6.

é o mágico e é o sagrado
que faz o verso. o lamento de orpheu
e dos poetas que aí deixaram memória:
o fernando que, lentamente, descia
a rua garrett pensando em quantos
versos escreveria a história da humanidade;

o meu amigo mário que se encantava com
as belas damas parisienses, mas que dormia
sufocado pela sua própria poesia.

o delírio de uma bela cidade como almada
que ainda alberga o rosto todo de lisboa,
mesmo que o tejo permaneça molhado
acima da crosta terrestre.


jorge vicente


7.

no estiramento da alma que seca
na manobra do tempo
o cheiro do tejo molhado
foi o único odor que ficou de ofélia

choviam estilhaços de vida no martinho da arcada,
pedaços de gelo deliravam nas águas da escrita

nas regras da aparência e no nome, o general
na correspondência, o espaço íntimo
fora dos limites da paisagem, o ego

e o eu vencido.


sonia regina


8.

por onde vais, caminhante que procura o ego,
caminhante que procura e não sente,
não sente que a palavra não fica ausente.
nunca. nem quando somos menos que nós.
ou talvez menos do que pensamos de nós.

ainda ontem, quando passeava no tejo,
vi-te a olhar para os barcos, procurando
por entre os passageiros e as gaivotas.
nunca encontrarás aí o teu ego. não
o procures. acha-o e aceita que ele seja
apenas um limite para a tua despedida do
corpo. nunca abandones o corpo. ama-o
como se ama uma filha saída da casa dos
pais. bela como a flor de israel.


jorge vicente


9.

por onde vais, marujo, se abandonas a barca?
por que não navegas, no areal, a tua visão
da viscosidade afogada no teu próprio escárnio?
é a quintessência animal que, com cinco braços,
leva à boca os mares e bebe o rio onírico.
deixa ficar a palavra e desenterra teus traços
das imagens e sentidos desse paraíso perdido,
atravessa as sensações num jogo de cores e sons,
tempos e espaços.

na memória e na imaginação acenderás
a estrofe derradeira

não se paga muito por um crepúsculo na viagem
em direção às janelas ausentes de ferrolhos.


sonia regina


10.

o sol nunca se(a)paga nem a visão
d'aquele que pensamos ser o sol quando,
sorrateiros, abandonamos a casa paterna
apenas por momentos. poderíamos chamar
o momento da descoberta do corpo; poderíamos
chamar o último verso escrito pelas plantas
dos pés (já houve um livro de poesia sobre isso)

poderíamos apenas pensar que é uma barca
que voa ou uma barca que apenas pensa
que voa porque o pensamento é mais do que
a madeira é mais do que a metamorfose
das plantas dos pés é mais do que a poesia
de todos os poetas de todos os lugares
e de todos os espaços entre os lençóis.


jorge vicente


11.

visualizamos nas cinzas
letras que devoram folhas,
constroem o corpo
unindo em si mel e sangue,
luminosidade e obscuridade,
vida e morte

explodimos violeta em tempestade de luzes
e alcançamos a maré que entorna do umbral,
espiamos por entre as fendas e nos regalamos
com o que descobrimos em nós

deuses infecundos com asas nos pés, alheias
à força da criação, nos convertemos em humanos
sujeitos a uma total escuridão nos passos tiranos,
cuja poesia não cobiça a vida nem transtorna o juízo


sonia regina


12.

onde está a escuridão. no passo lento com o qual
atravessamos a estrada. a estrada larga que cresce
nas avenidas e diminui nas veias da carne que é a
nossa e que pode ser a tua, se quiseres. se o vento
quiser, abriremos também as fendas que dormem na
escuridão e a partem em dois: são velas, fogos de cor,
chamas violeta que encandeiam o mais subtil dos seres.

onde estás tu, não sei. mas a terra é pequena demais
para o poema.


jorge vicente


13.

nunca pensei que a escuridão me causasse. e assim foi
ontem: um dia de impacto.
quem sabe internamente eu te buscasse fora da estrada,
em sintonia fina e estreita com a avenida para lá do visto.
o teu dizer me venceu e falamos juntos, tu, eu e as veias
que crescem quietas.

nesta noite o vento não me verá, mas eu o escutarei
em nossa terra; haverá quem o ouça além.

ainda me doem em vermelho as três fendas que atravessei
contigo, mas me sorriram e banhei-me em seu violeta
sem medo das salamandras. brinco com o fogo do poema
e não sei onde estou - apenas sou.


sonia regina


14.

e eu apenas acabo. sou o poema dividido em dois.
o suor duplo. o impacto duplo. a súbita transfiguração
de duas amas num verso só, num dom violeta
de inquietação.

selo o poema com este beijo azul

jorge vicente



Imagem: David Orias

2 comentários:

Anônimo disse...

Olá Sonia, fico contente que tenha aceitado o convite para acompanhar minha página; tenho a certeza do frutificar de uma bela amizade literária.

abraço das letras
Marcos Miorinni

sonia regina disse...

Olá, Marcos

Nem sabia que havia sido um convite você estar a acompanhar a minha. Mas, aqui estamos a acompanhar nossas escrituras.

outro abraço
da sonia