Nas cinzas e na semente, a promessa arde

Sonia Regina
  




















 imagem: Pnina Evental




Acordei com uma sensação de inquietude e muito calor. Olhei à volta e não reconheci o lugar. O céu era vermelho, as rochas pareciam brasa. Vi-me desfeita em lava. (Lava?)
 

Ouço os estrondos de um vulcão. Após cada erupção sangro pelos poros da terra, à procura de solo úmido. Ainda desordenada e confusa, rompo a mata e cubro a estrada de névoa.
 

Lembrei-me de um momento amoroso e de uma combustão que me impedia a visão. Mãos tocavam meus pés, vozes longínquas me chamavam para a paisagem. De repente, senti as gotas. Um jorro me refrescava e convocava, água. E eu me tornei líquida. (Líquida?)
 

Quente, evaporo. Condenso, chovo. Lavro inférteis terras em busca da essência quase ausente. Trabalho na disrupção dos congelados padrões de percepção e faço meus sentidos saltarem, voando para além do que foi discurso. Uma revolucionária reorganização do meu cotidiano.
 

Dormi rupturas e acordei inteira. Só, nua, defronte ao oceano. Nele mergulhei meu desassossego, com imponderáveis. E leve e livre eu o deixei, redimida e resgatada de mim. Tendo abalado a gnose da visão na travessia sem toque, minhas mãos despojadas se transformaram em asas. (Asas?)
 

Na crisálida, sou quase borboleta de asas amarelas. Tenho guardados vários e caprichados vôos. Como na folha perene da árvore da vida e me preparo para colher o mesmo ar puro dos corpos ligeiros.
 

Fiz com a alegria um sonho feliz. Tuas asas sedentas se abriam nas minhas, eu te envolvia como a pausa de uma canção. Choravas por um dueto, colo, por um regaço que nos embalasse. Quiseste me acolher, voar comigo, inaugurar um novo despertar. Saí sem me despedir, tornada bruma. (Bruma?)
 

Sem ruminar metas, bruma em busca do sentido sacralizado, aspiro subtrair-me à causalidade. O chão corre devagar e não hesito entregar-me ao suave deslizar. Sou o mistério que o recobre.
 

Vivi uma contingência da paixão. Emergindo das condições intersubjetivas, o privado se redescobriu na sublimação. A inocência não se anulou. Dissolvendo os limites entre a memória e o romance, no encontro desvelei fronteiras: eu, um momento lírico. (Momento lírico?)
 

A disposição anímica é forte, explícita profissão de poética. Num episódio mitigado biograficamente, talvez o exemplar vivo e único de um instante efêmero decorrente da inspiração. O momento lírico remove configurações, deixa que o sensível fale do fruto e dance o despertar.
 

Nas cinzas e na semente, a promessa arde. Passado, futuro, presente - na intenção.

17.01.10

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