A canadense Claire Varin e Clarice Lispector

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Originalmente publicada no Jornal do Brasil em 23 de março de 2002, copiada de http://br.geocities.com/claricegurgelvalente/artigos_01.htm



"Aqui as pessoas são mais seres humanos. Não andam só
com a cabeça. São também corpo, espírito e coração.
O sentimento invade tudo. Vocês são muito mais inteiros.
Sempre digo aos canadenses: temos muito que aprender
com os brasileiros. Faço aqui uma dedicação de amor ao Brasil.
"




A canadense Claire Varin é um dos nomes mais conhecidos na fortuna crítica de Clarice Lispector. Foi ela quem fez uns dos primeiros e mais importantes estudos sobre as relações biográficas na obra da autora de Perto do coração selvagem em sua tese de doutorado, que só agora chega ao mercado brasileiro: Línguas de fogo: ensaio sobre Clarice Lispector. Apaixonada não só pela literatura de Clarice, mas também pelo Brasil, Varin veio ao Rio para divulgar seu livro e fazer uma breve turnê de lançamento que vai se estender até Brasília. Esta é a sétima vez que a canadense vem ao Brasil. Uma dessas visitas durou quase um ano e meio. Tempo suficiente para aprender o português e descobrir novos aspectos sobre a cultura de um país que admira. Hoje, falando fluentemente o idioma, com apenas um leve sotaque francês ao fundo, Varin aproveita a temporada nos trópicos e o contato com os leitores brasileiros. Em entrevista ao Jornal do Brasil, ela contou como começou a se envolver com o mundo literário e biográfico da escritora brasileira e ainda de como abandonou os círculos acadêmicos por se sentir pouco à vontade nos meios universitários. Ex-professora da Universidade de Montreal, ela acredita que seus métodos de pesquisa, e também seu objeto maior de interesse, ou seja, a obra de Clarice Lispector, não combinam com o formalismo das universidades. Claire Varin não teme as possíveis críticas quanto ao seu estilo não-acadêmico e aposta numa crítica que tenha o mesmo ritmo fluido e subjetivo de Clarice, que considera um dos ''gigantes da literatura universal''. Varin é também autora, entre outros títulos, de Professio: indien e Clair-obscur à Rio, duas obras de ficção ambientadas no Brasil, de Rencontres brésiliennes, coletânea de entrevistas dadas por Clarice Lispector à imprensa brasileira, e do romance Désert désir, em que trocou as areias do Rio pelas dunas do Saara.

Qual foi o seu primeiro contato com a literatura de Clarice Lispector?

Foi em Montreal, quando eu estava assistindo a uma palestra de Heléne Cixous sobre poesia e política. Eu era então estudante de Letras e fiquei encantada com as coisas que ela dizia, como a constatação e o estarrecimento de sermos contemporâneos de uma rosa e, ao mesmo tempo, de um campo de concentração. Naquele momento, pela primeira vez, eu ouvia falar de Clarice Lispector. Ouvi este nome e fui descobrir quem estava por trás. Fui ler, então, a obra e comecei com A paixão Segundo G.H. em uma esplêndida tradução francesa. A partir daí, tudo mudou na minha vida. O envolvimento foi tão grande que eu resolvi fazer minha tese de doutorado sobre a autora, aprendi português e vim para o Brasil.

Qual foi exatamente o aspecto da literatura de Clarice Lispector que mais despertou sua curiosidade de pesquisadora?

O fato de a autora ser capaz de ir fundo em suas observações. É uma profundidade rara do olhar, uma intensidade poética que vai além do bem e do mal. Um misticismo também muito grande. Clarice Lispector é, sem dúvida, um dos gigantes da literatura universal.

Sua tese de doutorado teve suas primeiras pesquisas feitas no Brasil. Como você conseguiu destrinchar os fios de sua análise?

Eu vim para o Brasil disposta a procurar, antes de tudo, a família e os amigos de Clarice Lispector. Encontrei pessoas como Paulo, um dos filhos dela, que, a princípio, pareceu-me um pouco arredio para falar a mãe. Penso que já estava cansado de tocar no assunto. Encontrei também Elisa Lispector, a irmã. A pergunta inicial, que me ajudaria a encontrar a linha da minha pesquisa, era simples, embora todos se recusavam a responder: que língua se falava em casa na infância de Clarice? Ao fim de muito insistir, eu consegui arrancar uma confissão de Elisa, que me disse: o iídiche. Textos sagrados eram lidos em voz alta em casa e a língua judaica circulava por todos os lados. Pronto. A partir daí, eu consegui desenrolar a primeira parte da minha tese que é sobre a relação da autora com as línguas de ouvido, no capítulo O dom das línguas.

Além da família, quem mais lhe serviu de guia nesta viagem?

Eu tinha em mãos uma lista de pessoas que precisava conhecer e que acabaram me mostrando um desenho de Clarice Lispector. Fora elas Bella Josef, Nélida Piñon, Lygia Fagunes Telles, Rubem Braga, Helio Pelegrino, Orro Lara Resende, Autran Doutrado, e uma série de outros. Eu estava entrando no mundo de Clarice Lispector e aquilo me parecia uma experiência muito forte.

Seu trabalho toca realmente em várias questões biográficas. Na sua opinião, em que medida elas influenciaram na obra da autora?

Muitos aspectos tiveram uma repercussão imensa na obra de Clarice Lispector. A relação com a mãe paralítica, por exemplo. A mãe, sempre sentada e taciturna, que nunca chega à filha, foi uma referência constante. Não posso deixar de lembrar dessa mãe paralítica quando Clarice escreve em A paixão segundo G.H. que ''tudo o que é fêmeo é preso na cintura''. Acredito que se trata de uma referência direta à mãe. Outros aspectos são as línguas, as muitas línguas que Clarice ouvia, o iídiche, o português, e depois os idiomas que ela aprendeu, que formaram uma dualidade oculta e que marcou profundamente a vida e a obra da autora. Enfim, acreditava que tudo isso apontava para um caminho a ser explorado. Eu estava tocando em alguma coisa nova.

Por que você acha que, ao contrário das literaturas de línguas hispânicas, a literatura brasileira não alcança uma universalidade? Será que faltam aos nossos autores um certo apelo universal? Seria a literatura brasileira muito nacionalista?

Não, eu não penso desta forma. Há certamente um conteúdo universal na literatura brasileira, que não é menor do que as de língua hispânica. O problema é, o espanhol se espalha mais pelo mundo do que o português, enquanto que o Brasil é um continente dentro de um continente. Neste sentido, fica um pouco isolado e as obras custam a sair daqui.

Você acha que o seu trabalho tem contribuído para divulgar a literatura brasileira?

Sem dúvida. Tenho falado muito sobre literatura brasileira nas rádios, nos meus cursos, em textos de revistas. Vivo falando de Clarice Lispector, que está aos poucos se tornando conhecida. Recentemente, participei da montagem de uma peça de teatro, misturando alguns textos da autora, como as crônicas de A descoberta do mundo. O público adorou e a noite foi mágica. Acho que a literatura brasileira precisa ser mais difundida e eu mesma já propus a publicação de obras de autores brasileiros para algumas editoras. Os intercâmbios também são importantes. No ano passado, esteve no Canadá Lucia Cherem, que me auxiliou na tradução em português. Lúcia chegou lá para estudar a receptividade da obra de Clarice Lispector no Canadá, o que será tema da sua tese.

Você continua ministrando na universidade?

Não. Eu jamais gostei dos meios acadêmicos. Já lecionei Clarice Lispector na Universidade de Montreal, sobretudo no aspecto da tradução literária. Mas, sinceramente, aquilo me cansou. Não quero mais trabalhar nos meios acadêmicos. Sua tese tem, de fato, um estilo não-acadêmico.

Você acha que consegue ser compreendida por esse mesmo meio do qual você se recusou a fazer parte?

Muitas vezes, não. O que mais me incomoda nas universidades é que os professores e intelectuais parecem saber tudo. Eles se posicionam num altar como se fossem a sabedoria em pessoa. No Canadá, a situação é ainda muito pior do que aqui. O meu interesse vai por um lado completamente diferente: acho que estamos sempre em busca do saber e o trabalho de pesquisa é um eterno descobrir.

A própria Heléne Cixous também caminha nesta direção, recusando-se a fazer análises puramente acadêmicas das obras de Clarice. Por isso mesmo ela é muito criticada.

Sim, ela é criticada por quem não entende a proposta. Cixous, embora às vezes exagere, chegando a incorporar trechos da autora em seus escritos, sem que o leitor saiba de fato quem é quem, faz uma leitura antropofágica de Clarice Lispector. Quem não entender isso não vai gostar.

Você vem sempre ao Brasil e conseguiu um ótimo domínio do português. O que mais a encanta no país?

Aqui as pessoas são mais seres humanos. Não andam só com a cabeça. São também corpo, espírito e coração. O sentimento invade tudo. Vocês são muito mais inteiros. Sempre digo aos canadenses: temos muito que aprender com os brasileiros. Faço aqui uma dedicação de amor ao Brasil.



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