David Mourão-Ferreira

por José António Gonçalves


Esta coisa deslumbrante de seres poeta
sem prevenires antecipadamente o mundo
ou a dor que alimenta o verso,
a alegoria que algures visita o pensamento
ou o seu reverso.

Esta coisa absurda de pensar o amor,
onde a carne apenas palpita, no sonho,
o anverso da ilusão, a casa, a consciência,
empurrando a mão, o corpo, a oprimir o esgar
aziago da mais obscura solidão.

Esta coisa de se ser poeta e gostar
insistindo na palavra que veste o vento
a ideia de que a metáfora mora mais além,
no lugar onde a rima não quer chegar,
ignorando o seu sentido, a fonética, a luz
necessária para iluminar um aconchego.

Esta coisa de nascer, hoje, com destino,
e avançar pelas serranias, de braços abertos,
é tudo quanto nos faz despertos e sãos
para adormecermos, um pouco ou nada,
nas páginas de livros fechados
onde um dia, sem querermos, acordamos
de madrugada nas mãos da liberdade
e abraçados como irmãos.




(in "Aventura na Casa dos Livros", Colecção Cadernos Ilha, nº. 10, Ed. Correio da Madeira, 2000)

Nenhum comentário: