“Desculpem, mas não sou profundo”

Clarice Lispector


Érico Veríssimo é um dos seres mais gostáveis que conheci: é pessoa humana de uma largueza extraordinária. Foi em Washington onde eu conheci a Mafalda, Érico trabalhando na OEA. Eu fazia ninho na casa e na vida deles. E disse ele que as melhores recordações que guarda de sua estada em Washington D.C. foram as horas que passaram em minha casa. Érico não conseguiu escrever uma linha durante esses três anos burocráticos.
Não se considera um escritor importante, inovador ou mesmo inteligente: acha que tem alguns talentos que usa bem, mas acontecem serem menos apreciados pela chamada critica séria como, por exemplo, o de contador de histórias. Os livros que lhe deram uma grande popularidade como Olhai os lírios do Campo, ele os considera romances medíocres. O que vem depois dessa primeira fase é bem melhor mas os críticos apressados não se dão ao trabalho de revisar opiniões antigas e alheias. Agora há no Brasil vários críticos que o levam a sério, principalmente depois que publicou O tempo e o vento. Mas a idéia de ser querido, digamos amado, agrada-lhe mais do que a idéia de ser admirado. Não trocaria seu público que o adora por uma crítica que lhe fosse mais favorável. E há ainda os grupos. Os esquerdistas o consideram acomodado, os direitistas o consideram comunista.
Seu personagem mais importante é talvez o Capitão Rodrigo. Depois pensa em Floriano, seu sósia espiritual. Prefere dizer que seus personagens mais importantes são as mulheres de O tempo e o vento, como Bibiana e Maria Valéria. Quanto à ausência de profundidade de que alguns críticos o acusam, responde como um escritor francês que “um pot de chambre est aussi profond”. Mas concorda com os críticos: “Não sou profundo. Espero que me desculpem”.
Começou a escrever em menino, na escola, fazendo redações ótimas. Foi ainda em Cruz Alta, atrás de um balcão de farmácia, que escreveu o primeiro conto. Naquele tempo ainda pensava que podia ser pintor.
É péssimo homem de negócios, detesta discutir contratos e quando discute sai perdendo.
A fama de Érico é enorme. O ônibus de turistas tem que, como parte do programa, mostrar a casa aonde vivem os Veríssimo. Para Érico a fama tem um lado positivo: a sensação de que se comunica com os outros. E sua fama não é só como autor, através dos personagens, mas também como uma espécie de figura mitológica. A história do ônibus o encabula muito. Mas ele cultiva a paciência. E detesta decepcionar os que o procuram, os que desejam conhecê-lo em carne e osso. Sua casa vive de portas abertas. Há noites em que os Veríssimo têm de dez a 20 visitantes inesperados. Todas as semanas recebem dezenas de estudantes que o querem entrevistar, e a gama vai do curso primário ao universitário. Pessoas com os casos sentimentais o procuram para desabafar. Ele ouve, olha, e não raro dá uma afetuosa atenção. Às vezes consegue ajudar realmente um ou outro paciente, e isso o alegra.
Como escritor tem muitas alegrias. E, como homem, a sua maior alegria são os filhos, os netos.
Sobre inspiração, à falta de melhor palavra, não sabe de onde vem, e freqüentemente pensa no assunto.
É sabido que Érico não entraria na Academia Brasileira de Letras. Ele a respeita, e lá vê muito boa gente. Mas não tem, nunca teve, a menor vontade de fazer parte da ilustre companhia; é uma questão de temperamento.
Érico planeja de início a história, mas nunca obedece rigorosamente o plano traçado. Os romances, diz ele, são artes do inconsciente. Quase que se considera mais um artesão – e com isso se explica talvez por que a crítica não o considera profundo.
Viajou com Mafalda a metade do mundo. E o que o impressionou mais foi Mafalda. Sua capacidade de compreendê-lo, de ajudá-lo, acompanhá-lo e, de vez em quando, dirigi-lo sem que ele desse pela coisa. Érico herdou de seu avô, tropeiro, o gosto pelas andanças: quer sempre ver o que está pela frente. Mafalda tem a alma calma, no melhor sentido da palavra; quer logo estabelecer-se, radicar-se. Mas Érico arrasta-a para dentro de trens, ônibus, aviões, e lá se vão eles. Gostou principalmente dos paises latinos da Europa: França, Itália, Espanha, Portugal. Tem uma fascinação enorme pela área mediterrânea. A Grécia e Israel encantaram-no.
Gostaria de voltar a escrever para crianças; elas precisam livrar-se do superman, do batman. Mas que história poderia contar nesta hora desvairada? isto é assunto para discutir. Considera ainda muito pobre sua literatura infantil.
O que é que ele mais quer no mundo? Primeiro, gente. A sua gente. A sua tribo. Os amigos. E depois vêm música, livros, quadros, viagens. Não nega que também gosta de si mesmo, embora não se admite.


[Crônica escrita para o Jornal do Brasil, publicada no livro  A Descoberta do Mundo]

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