O Casario - Sonia Regina
















Movimentos mais lentos e delicados cabem inteiros no tempo: sem roçá-lo, permanecem movendo-se ano após ano. Como a cor.

Sentia saudades de certas épocas e quando a nostalgia a tomava ficava quase irritada. Núbia era virginiana prática, organizada, avessa a devaneios.

“Cuida bem de você”, dissera a Tereza, e aquela frase não saía de sua cabeça. Núbia ainda sentia o suave e quase doce abraço que ela lhe dera, após o encontro casual e rápido.

Suas palavras, o abraço, a imagem de Tereza desvaneceriam, parte do hiato poderoso que urgia dissipar-se, também. Já não havia tempo para adiamentos, queria dar mais a si própria.

Foi atrás de uma nova receita: o essencialmente pragmático a aproximava do não-pensamento. Isso era bom e raro, Núbia não era afeita à arte da culinária. Contudo, descansava a mente e a criatividade soltava-se tateante, em busca do que acendesse algum sabor e desse luz a um novo prato.

Em momentos assim ancorava-se nos detalhes. Os antes despercebidos a assaltaram naquela manhã, de janela não diferente da habitual. Via ao longe telhados cobrindo casas amarelas e brancas, de portas azuis. Todavia, seu deslumbre foi para o colorido dos barracos na favela.

Sempre dissera que o mundo girava na voz e os encantamentos surgiam do olhar. O seu, agora, pousava nesse casario ainda na sombra. O sol que tocava seu rosto - levemente, como sempre - não havia chegado lá.

“Mas o sol não para”, pensou.





Imagem: Wladymir Ungaretti


O autor é fotógrafo, jornalista e professor da UFRGS
http://www.pontodevista.jor.br/




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