" o nada é uma fenda pela qual o mundo surge"

copiado do post Alguns poetas no espelho - blog de José Castello http://oglobo.globo.com/blogs/literatura/


Voltam-me, mais uma vez, os pensamentos de Vilém Flusser. Ultimamente, eles não me abandonam. Nós, leitores, somos dados a manias. Fios secretos nos ligam, de repente, a um escritor. Um dia, sem saber por que, o abandonamos. Nenhuma garantia: a qualquer momento a paixão pode retornar.

Abandono: eis um tema que interessava muito a Flusser. Dizia ele que "a conversação ocidental abandonou a intuição poética". Falar, falar, falar nos impede não apenas de ouvir, mas de sentir. No grande falatório, é a intuição que perde seu lugar. Vou ao dicionário, nele sempre me amparo. E encontro: "Intuiçao _ do latim intuitione". Significa: "imagem refletida por um espelho".

Na intuição, já não vemos o mundo. Nada temos a dizer a seu respeito. Nenhuma palavra. Nada. As coisas nos escapam por completo, mas nos deixam um reflexo. Uma imagem. Talvez seja uma redundância falar, como Flusser, em "intuição poética". Toda intuição se parece com a poesia.

Flusser não desprezava o diálogo. Ao contrário. Acreditava, porém, que em nosso mundo ocidental, já naqueles anos 1960, um grande falatório nos abafava. O que dizer dessa zoeira em que, cinquenta anos depois, ensurdecemos? Como dar valor à intuição em um mundo dominado não só pelas palavras, mas pela obrigação de falar?

Algumas imagens (esparsas, desconexas, sutis) me vêm. Não me peçam para explicá-las, ou justificá-las, porque não sei fazer isso. Eu as ofereço ao leitor como um cego que, sem saber o que pega, mesmo assim passa adiante.

Hilda Hilst, vestindo uma bata de sacerdotisa, abraça-se a uma figueira de sua chácara, em Campinas. Ela a considera mágica. Manuel Bandeira, alguns centímetros acima do chão, flutua pelas ruas da Lapa. Nas esquinas, resvala em seus poemas. Vinicius, ainda jovem e magro, foge das meditações metafísicas de seus colegas de faculdade. Busca um ponto de salvação nas coisas terrenas. Encontra a primeira mulher, Tati.

Drummond, solene em sua mesa de burocrata, remexe seus papéis de trabalho como quem procura um tesouro que jamais estaria ali. E, é claro, nada encontra. Em Sevilha, João Cabral caminha sem rumo pela Calle Sierpes. Uma parada no ateliê do jovem Tápies, outra em uma livraria, busca um lugar para respirar. Mas o ar vem dos versos.

Hoje mesmo. Adélia Prado em sua cozinha, requenta um feijão caseiro. Uma forma discreta de meditação. A bordo de um monomotor, Manoel de Barros sobrevoa as aves do pantanal _ vôo sobre o vôo, duplicação do silêncio. Em Cuiabá, Lucinda Persona dá aulas de química, mas sua mente está em outro lugar, que não tem um nome. É nele que escreve.

Imagens que me sustentam. Que, de tão fortes, me silenciam _ como o travo na garganta que sentimos diante da beleza. Momentos em que os pensamentos fracassam. Não sei se fracassam: acontece que, como uma névoa forte, alguma coisa os envolve e os alarga, levando-os além, muito além, do que pretendiam dizer.

A intuição é isso: quando nada temos a dizer e só desejamos contemplar. Temos, então, a impressão de que nada mais resta. Tolice. Flusser nos mostrou que o nada é uma fenda pela qual o mundo surge.



 
 

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