Este conto eu escrevi em janeiro, a partir de um exercício proposto pelo José Castelo em sua oficina (que andamos republicando em janeiro de 2010, aqui):
Escreva um conto de no máximo 3 mil caracteres que relate uma história complexa, misteriosa, confusa, de maneira direta e simples. Escrever de maneira simples não é o mesmo que "decifrar", ou "solucionar" a história, não é o mesmo que "explicá-la". É, ao contrário, uma maneira de tornar a história ainda mais intricada, enigmática e perturbadora. Uma exigência: a história deve ser contada a um interlocutor fictício que, por exemplo, acompanha o autor em uma mesa de bar. Deve ser "falada" – com todas as ênfases, improvisos e liberdades da linguagem oral –, mais do que "escrita". E deve ainda apontar, todo o tempo, para seu desfecho.
________________________________________________________________________
________________________________________________________________________
Perdeu. Perdeu?
Sonia Regina
-Lembra-se da Marta?
-Claro! Tão linda...
-... E doce. Ainda é.
-Ficou de me enviar uns poemas.
-Marta é escritora? Realmente suas redações eram ótimas.
-Não, casou-se.
-Ué... Escritoras não se casam?
(risos)
-Ela tem uma filha que estuda Línguas.
-Ah, e é poeta.
-Não.
-Marcos! Vem cá.
-Sim, doutor.
-Mais café e pãezinhos pra nós.
-Certo. Doutor...
-Diz.
-O senhor recebeu uns poemas?
-Hein?
-O senhor não está para receber uns poemas?
-Estou. Estou sempre para receber alguma escritura, disse brincando. É meu métier.
- (?)
Marcos afastou-se sem entender nada. Que ideia aquela sua, de meter-se com doutores. Logo os poemas chegariam e teria uma resposta.
Contou a Sandra, durante o jantar, daquele episódio no café da livraria. Toda quarta-feira jantavam juntos, em sua casa.
-Você enviou os poemas?
-Não. Dona Carla vai levá-los. Trabalha perto da editora e se ofereceu.
Marcos não gostou da novidade. Aquela amiga de Dona Márcia não lhe parecia confiável. Sempre puxando o saco de Dona Bruna, abusava da generosidade da amiga. Nunca pagava um lanche. E se insinuava pra ele, embora soubesse que era namorado de Sandra.
* * *
Mergulhar na memória é banhar-se de alguma meninice. Marta sentia saudades da leveza infantil e sua mente passeava pelo faz-de-conta. Estremeceu.
-Então, filhota, vamos cair? Disse a Bruna.
Brincaram, nadaram, voltaram pro banho de sol. Sandra, muito solícita, esperava-as com uma jarra de água de coco e queijo branco aos pedacinhos.
-Hummmmm. Que dia bom! Como está, Sandra? Nem te vi hoje.
-Pois é, veio em jejum pegar sol... D. Bruna...
-Sim?
-Aquele livro que está lendo... A Sra. me empresta?
-Claro, Sandra. Logo que eu terminar.
Era fantástica aquela moça! Bruna não deixava de se espantar com sua sede de saber, com seu apreço pelo conhecimento. Incentivava-a, a cada passo que dava. Sandra conhecia já muitos autores e seu gosto ia se apurando. Era muito sensível e sua subjetividade não era pequena.
-O que está lendo, Bruna?
-Rubem Braga. Já será o terceiro que ela vai ler. Acredita?
-Acredito. Temos uma pessoa especial por aqui, filha.
-Oi, gente! Carla chegava. - Vim tomar um banho de piscina, tudo bem?
Alguma coisa nela desagradava Marta. Não sabia o que era. Um sexto-sentido?
-Claro, disse Marta. Você não trabalha hoje? E os poemas de Sandra, que você se ofereceu para levar? Já levou?
Carla franziu a sobrancelha. Fumegava. Mas respondeu com aparente calma.
-Não, não deu. Mas vou hoje, sim. E levo os poemas - sem o menor problema.
-Bem, você que ofereceu. Respondeu Marta rispidamente.
-Vamos pra água? Convidou Bruna. Mais quentes que o sol estavam os ânimos. Conhecia Carla e não queria que se sentisse acuada. Ela não respondia bem à pressão de qualquer espécie.
Abriram o azul, vestiram-se de água e espantaram o mau-humor inventando brincadeiras.
* * *
A vida fica divertida quando nos colore de surpresas... boas. Sandra não as tivera. Sofrera muitos revezes calada, mas tinha o espírito livre e não a inquietude dos poetas.
Começara a escrever poemas a partir de alguns registros que fizera no diário que mantinha desde adolescente. As leituras de autores diversos o propiciara. A partir delas Sandra quis ler-se, e voltou a anos distantes no tempo para encontrar-se com o que havia ficado, no diário, protegido da realidade por sua quietude. Furtara-se a abrigar mentiras e algumas verdades às quais se apegara nada mais foram senão luzes caídas da imaginação sobre o real.
* * *
Carla achava Sandra fingida e a invejava por seu namoro e emprego. E, agora, por sua arte. Estava imensamente arrependida por ter-se oferecido para levar os poemas. Não queria participar de mais uma vitória de Sandra. Não tivera, contudo, como voltar atrás.
Saiu da casa de Bruna já pronta para o trabalho. Os poemas pesavam dentro da bolsa. Ia pensando em Marcos, jovem esforçado que conhecera na faculdade. Estudava Comunicação Visual e trabalhava em uma livraria. Nunca a percebera e todas as investidas de Carla haviam dado em nada. Surpreendeu-se ao saber que era namorado de Sandra.
Andava rápido e ia distraída, tão distraída que só viu a moto quando o pivete disse "perdeu, perdeu", puxando-lhe a bolsa com força. Gritou, correu atrás, pediu ajuda. Nada. Ninguém se manifestou.
Trêmula pediu numa loja o dinheiro para o ônibus e foi pra casa. Dormiu o restante da tarde, depois de chorar toda a raiva. À noite o telefonema de Bruna a acordou. Esquecida dos poemas choramingou querendo colo. Empertigou-se e um risinho malévolo de satisfação brotou de seus lábios quando disse a Bruna:
-Sandra? Perdeu. Perdeu...
* * *
-Então, que semana rápida!
-É, estamos ficando velhos.
-Deixei um envelope em sua mesa, você viu?
-Em minha mesa só havia uma correspondência da PUC.
-É esse. São os poemas que Marta pediu que lêssemos. E X C E L E N T E S!
-Ah, a pessoa estuda na PUC.
-Não!
-Trabalha lá?
-Não. (risos) E essa é a única cópia, nem há arquivo deles no computador. Estava com o professor da filha de Marta, a quem ela pedira uma opinião.
-Como?
-Uma história incrível. Parece até ficção, vou te contar! Daria um bom conto, pena que eu seja somente um editor...
(Riem)
23012011
Nenhum comentário:
Postar um comentário