Queria levar tudo que tinha ganhado da patroa e esse era o combinado com ela. Agora, sentia-se virada de ponta-cabeça como as cadeiras e a mesa que esperavam, na porta de entrada da cozinha, junto com as cortinas, o micro-ondas, o baú de vinhático maciço e o armário da área. Do lado de fora, no hall, aguardavam o transporte um freezer vertical e uma geladeira. No escritório, a esteira elétrica que tanto alegrara seu filho de quinze anos saber que receberia. Mas a irmã de Justine e o cunhado, solidários, vieram com o motorista em uma kombi...fechada!
D. Marisa resolvera entregar a casa de praia e de lá trouxera alguns eletrodomésticos e móveis. Gostava de Justine, eram amigas, e resolvera doar-lhe tudo que não fosse, de fato, necessitar - não velharias.
Mexe daqui, vira de lá, amarra acolá e o motorista deu um jeito para caber quase tudo.
Sorrisos de alívio iluminaram as expressões crispadas e o sol do meio-dia selou a manhã de sábado bem-sucedida. Uma energia vigorosa no ar fazia suspeitar que, aquele, poderia ser um fim de semana feliz.
Justine tinha o nome da avó, uma sul-africana belíssima que viera para o Brasil ainda moça e aqui deitara raízes profundas. Como ela era esguia, suave, dona de uma força de vontade férrea. A avó a havia criado desde a morte da mãe, aos nove anos.
Dotada de um imenso senso de justiça, Justine desde cedo aprendeu que a vida não era tão justa. Coisas inesperadas aconteciam e o destino era incerto. Mudou de rumo algumas vezes, interrompeu os estudos para trabalhar, não fundou uma família como a da avó.
Havia, entretanto, gerado um filho – sua razão de viver há quinze anos. Mas não tinha ainda quarenta anos e acreditava, por experiência própria, nas surpresas da vida. Podiam ser más - ou boas.
Passava roupa, muito quieta, olhando pela janela, de vez em quando. Ouvia as crianças no pátio e sorria, tomada de lembranças. O filho de D. Marisa – hoje com 21 anos - era pequeno e costumava brincar com Giovanna, a menina de quem era babá. Iam os quatro à praia durante a semana e divertiam-se. Bons momentos.
Na verdade, nunca fora empregada fixa de D. Marisa. Sempre que D. Marisa estava sem empregada, Justine estava satisfeita no serviço. Sempre que estava sem emprego, D. Marisa estava satisfeita com a empregada. Trabalhou nas férias de algumas e passava roupa aos sábados, há uns meses.
Mas estiveram tão próximas na juventude, quando os filhos eram pequenos, que a solidariedade e companheirismo transformaram-se em amizade sólida. Quando D. Marisa quebrou a perna, nos dois meses em que esteve usando cadeira de rodas Justine acompanhava-a três vezes por semana, depois do serviço. Atendia-a à noite, ajudava-a no banho. Período de dor que compartilhou.
Talvez tenha sido nesse período que D. Marisa deu-lhe um cartão com um trecho de um livro que lia, de Lou-Andreas Salomé:
Ouse, ouse... ouse tudo!!! Não tenha necessidade de nada! Não tente adequar sua vida a modelos, nem queira você mesmo ser um modelo para ninguém. Acredite: a vida lhe dará poucos presentes.
Se você quer uma vida, aprenda... a roubá-la! Ouse, ouse tudo! Seja na vida o que você é, aconteça o que acontecer. Não defenda nenhum princípio, mas algo de bem mais maravilhoso: algo que está em nós e que queima como o fogo da vida!!!
Justine impressionou-se com aquela fala. Achava-a verdadeira, gostaria de tê-la escrito. D. Marisa também poderia tê-la escrito. Eram ambas mulheres guerreiras e justas, generosas e solidárias. E, apesar dos percalços, acreditavam. Algo sempre podia acontecer e mudar uma direção má; depois da mais negra noite haveria sempre um dia – que podia ser colorido.
D. Marisa ajudava-a no que mais podia, além do abraço amigo que ofertava. Justine contava com ela para comprar coisas mais caras em seu cartão de crédito.
Passou a mão pela testa, tentando afastar os pensamentos. Os olhos marejavam e não queria molhar a roupa com suas lágrimas. Seu olhar, contudo, permaneceu enevoado.
*
No final da tarde o telefonema do filho suavizou de vez o olhar de Justine. Contava-lhe que a esteira elétrica e o baú, que não haviam cabido na Kombi, o pai levaria em seu carro particular.
Suspirou fundo e sorriu: continuava a ter motivos para acreditar.
Sonia Regina
02072011
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