A FICÇÃO DA TESE
Gustavo Bernardo *
" (...) No entanto, se a literatura é arte, parente muito próxima dos mitos e das religiões, então ela é menos um objeto de estudo do que uma morada existencial. De modo bem diverso das demais disciplinas, a literatura pode se tornar apaixonante tanto à razão quanto à emoção de uma pessoa. (...)"
publicado originalmente no jornal O GLOBO em 13/09/2008
____________________________________________________________________ * Gustavo Bernardo Galvão Krause é graduado em Português Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (1977), Mestre em Letras pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (1992), Doutor em Letras pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (1995) e realizou seu estágio de Pós-Doutorado no Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Minas Gerais (2006). Atualmente é professor adjunto da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, com dedicação exclusiva, como Procientista. Conta com uma Bolsa de Produtividade em Pesquisa do CNPq para desenvolver sua pesquisa sobre a relação entre filosofia e literatura - mais especificamente, sobre o fenômeno da metaficção como signo de uma busca agônica pela identidade. Assinando como "Gustavo Bernardo", escreve e publica ensaios e romances. Em 2008, publicou, pela editora Annablume, o ensaio "Vilém Flusser: uma introdução", junto com o suíço Rainer Guldin e a alemã Anke Finger, e o romance "A filha do escritor", pela editora Agir, sob patrocínio do Programa Petrobras Cultural.
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O ensaio, na íntegra
“A literatura é mais importante do que a música, a pintura, o teatro e as demais artes.”
É mesmo? Dito assim, parece absurdo – e é. No entanto, trata-se de uma das premissas da escola. A condição de arte eminentemente verbal empresta à literatura prioridade no currículo, na carga horária, nos exames, no corpo docente. Essa prioridade, todavia, nem sempre faz bem à literatura. Para transformá-la em uma disciplina “como as outras”, ensina-se literatura para se ensinar ou história ou língua ou cultura ou até mesmo patriotismo, escamoteando-se o seu caráter artístico.
“A literatura é apenas um objeto de estudo.”
Bem, talvez. Dito assim, já não parece tão absurdo quanto a sentença anterior. Se a literatura é uma disciplina como as outras, então ela é um objeto de estudo como os outros. No entanto, se a literatura é arte, parente muito próxima dos mitos e das religiões, então ela é menos um objeto de estudo do que uma morada existencial. De modo bem diverso das demais disciplinas, a literatura pode se tornar apaixonante tanto à razão quanto à emoção de uma pessoa. Por quê? Porque ela deliberadamente suspende a realidade a um nível ao mesmo tempo íntimo e superior – superior porque fruto assumido da invenção humana. Nessa perspectiva, uma reflexão sobre a literatura que preserve a paixão original exige menos fazer teoria da literatura do que buscar a teoria na literatura. Devo abdicar de controlar a literatura com minhas categorias lingüísticas ou históricas para deixar emergir seu enigma sem resolvê-lo – sem destruí-lo.
“Quantos de nós começamos a fazer Letras, a estudar literatura, porque gostávamos de ler e sobretudo de escrever?”
Puxa, precisava lembrar disso? Dirigida aos profissionais da literatura na escola, essa pergunta não é absurda, mas sim incômoda. Porque a sua resposta é: muitos, quiçá a maioria. E porque ela gera uma outra pergunta: quantos de nós paramos de escrever já na faculdade ou pouco depois, quando começamos a dar aula? A resposta à segunda pergunta é igual: muitos, quiçá a maioria. Isso acontece, talvez, porque transformamos o objeto da nossa paixão em apenas um objeto de estudo, supondo que assim dominaremos seu enigma. O preço a pagar é alto: a literatura deixa de ser arte para nós e nossos alunos e se torna uma “matéria” (na melhor das hipóteses, chata).
No entanto, há resistências. Há professores e escolas e universidades que não esquecem que a literatura é antes de tudo arte: desafio e enigma, paixão e ilusão. Isso acontece em vários níveis – por exemplo, quando uma pós-graduação em literatura aceita um trabalho de ficção como tese. Essa proposta, como demonstram os finalistas do Jabuti e do Portugal Telecom, costuma ser bem sucedida, gerando trabalhos de ficção ousados e conseqüentes porque frutos do diálogo tenso com a reflexão acadêmica. Isso se chama: produção de conhecimento e de cultura.
Mas há quem não concorde – talvez alguns daqueles que se esqueceram do porquê quiseram estudar literatura. Argumentam que um trabalho de ficção não é um trabalho científico, como se todo trabalho científico não fosse sempre um trabalho de... ficção. A hipótese científica é sempre uma suposição, um “como se” fosse para ver se pode ser assim mesmo. A estrutura discursiva da literatura stricto sensu difere da estrutura de um tratado de Física, mas o princípio do “como se” anima ambos os discursos. Por isso, mesmo em termos de teoria do conhecimento, mesmo em termos epistemológicos, não procede a resistência a trabalhos de ficção como tese de pós-graduação em literatura.
Não procede, mas se explica: explica-se pela dificuldade óbvia, reconheço, de orientar e avaliar um trabalho de ficção, quando os critérios se tornam bem menos seguros. Todavia, há critérios: os mesmos que utilizamos para distinguir se uma obra literária é menor ou maior, se obra-prima ou não. Ainda há outra explicação, que reluto em escrever mas escrevo: ressentimento. Se abandonei minha paixão no início do caminho para conquistar minha posição acadêmica, como esse fedelho que não deu todas as aulas que já dei e não corrigiu todas as provas que já corrigi se atreve a fazer da sua tese um romance, enquanto eu larguei meus poemas em passado remoto?
Puxa, também não precisava ofender. Colegas, calma, não se ofendam tão rápido; eu sei que essa carapuça não serve a todas as cabeças, há tantos outros motivos para resistir à arte na academia. Mas nós sabemos que ela serve sim em algumas cabeças: aquelas que justificam o ditado popular nefasto que nos persegue, até porque não de todo falso: “quem sabe, faz; quem não sabe, ensina”. Por isso, há que continuar fazendo – fazendo arte! – para dar o melhor exemplo a nossos alunos; da mesma forma, há que continuar estimulando quem faz – arte! – para recuperar não apenas para a literatura, mas também para o magistério, a sua condição original de... arte.
Gustavo Bernardo *
" (...) No entanto, se a literatura é arte, parente muito próxima dos mitos e das religiões, então ela é menos um objeto de estudo do que uma morada existencial. De modo bem diverso das demais disciplinas, a literatura pode se tornar apaixonante tanto à razão quanto à emoção de uma pessoa. (...)"
publicado originalmente no jornal O GLOBO em 13/09/2008
____________________________________________________________________ * Gustavo Bernardo Galvão Krause é graduado em Português Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (1977), Mestre em Letras pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (1992), Doutor em Letras pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (1995) e realizou seu estágio de Pós-Doutorado no Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Minas Gerais (2006). Atualmente é professor adjunto da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, com dedicação exclusiva, como Procientista. Conta com uma Bolsa de Produtividade em Pesquisa do CNPq para desenvolver sua pesquisa sobre a relação entre filosofia e literatura - mais especificamente, sobre o fenômeno da metaficção como signo de uma busca agônica pela identidade. Assinando como "Gustavo Bernardo", escreve e publica ensaios e romances. Em 2008, publicou, pela editora Annablume, o ensaio "Vilém Flusser: uma introdução", junto com o suíço Rainer Guldin e a alemã Anke Finger, e o romance "A filha do escritor", pela editora Agir, sob patrocínio do Programa Petrobras Cultural.
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O ensaio, na íntegra
“A literatura é mais importante do que a música, a pintura, o teatro e as demais artes.”
É mesmo? Dito assim, parece absurdo – e é. No entanto, trata-se de uma das premissas da escola. A condição de arte eminentemente verbal empresta à literatura prioridade no currículo, na carga horária, nos exames, no corpo docente. Essa prioridade, todavia, nem sempre faz bem à literatura. Para transformá-la em uma disciplina “como as outras”, ensina-se literatura para se ensinar ou história ou língua ou cultura ou até mesmo patriotismo, escamoteando-se o seu caráter artístico.
“A literatura é apenas um objeto de estudo.”
Bem, talvez. Dito assim, já não parece tão absurdo quanto a sentença anterior. Se a literatura é uma disciplina como as outras, então ela é um objeto de estudo como os outros. No entanto, se a literatura é arte, parente muito próxima dos mitos e das religiões, então ela é menos um objeto de estudo do que uma morada existencial. De modo bem diverso das demais disciplinas, a literatura pode se tornar apaixonante tanto à razão quanto à emoção de uma pessoa. Por quê? Porque ela deliberadamente suspende a realidade a um nível ao mesmo tempo íntimo e superior – superior porque fruto assumido da invenção humana. Nessa perspectiva, uma reflexão sobre a literatura que preserve a paixão original exige menos fazer teoria da literatura do que buscar a teoria na literatura. Devo abdicar de controlar a literatura com minhas categorias lingüísticas ou históricas para deixar emergir seu enigma sem resolvê-lo – sem destruí-lo.
“Quantos de nós começamos a fazer Letras, a estudar literatura, porque gostávamos de ler e sobretudo de escrever?”
Puxa, precisava lembrar disso? Dirigida aos profissionais da literatura na escola, essa pergunta não é absurda, mas sim incômoda. Porque a sua resposta é: muitos, quiçá a maioria. E porque ela gera uma outra pergunta: quantos de nós paramos de escrever já na faculdade ou pouco depois, quando começamos a dar aula? A resposta à segunda pergunta é igual: muitos, quiçá a maioria. Isso acontece, talvez, porque transformamos o objeto da nossa paixão em apenas um objeto de estudo, supondo que assim dominaremos seu enigma. O preço a pagar é alto: a literatura deixa de ser arte para nós e nossos alunos e se torna uma “matéria” (na melhor das hipóteses, chata).
No entanto, há resistências. Há professores e escolas e universidades que não esquecem que a literatura é antes de tudo arte: desafio e enigma, paixão e ilusão. Isso acontece em vários níveis – por exemplo, quando uma pós-graduação em literatura aceita um trabalho de ficção como tese. Essa proposta, como demonstram os finalistas do Jabuti e do Portugal Telecom, costuma ser bem sucedida, gerando trabalhos de ficção ousados e conseqüentes porque frutos do diálogo tenso com a reflexão acadêmica. Isso se chama: produção de conhecimento e de cultura.
Mas há quem não concorde – talvez alguns daqueles que se esqueceram do porquê quiseram estudar literatura. Argumentam que um trabalho de ficção não é um trabalho científico, como se todo trabalho científico não fosse sempre um trabalho de... ficção. A hipótese científica é sempre uma suposição, um “como se” fosse para ver se pode ser assim mesmo. A estrutura discursiva da literatura stricto sensu difere da estrutura de um tratado de Física, mas o princípio do “como se” anima ambos os discursos. Por isso, mesmo em termos de teoria do conhecimento, mesmo em termos epistemológicos, não procede a resistência a trabalhos de ficção como tese de pós-graduação em literatura.
Não procede, mas se explica: explica-se pela dificuldade óbvia, reconheço, de orientar e avaliar um trabalho de ficção, quando os critérios se tornam bem menos seguros. Todavia, há critérios: os mesmos que utilizamos para distinguir se uma obra literária é menor ou maior, se obra-prima ou não. Ainda há outra explicação, que reluto em escrever mas escrevo: ressentimento. Se abandonei minha paixão no início do caminho para conquistar minha posição acadêmica, como esse fedelho que não deu todas as aulas que já dei e não corrigiu todas as provas que já corrigi se atreve a fazer da sua tese um romance, enquanto eu larguei meus poemas em passado remoto?
Puxa, também não precisava ofender. Colegas, calma, não se ofendam tão rápido; eu sei que essa carapuça não serve a todas as cabeças, há tantos outros motivos para resistir à arte na academia. Mas nós sabemos que ela serve sim em algumas cabeças: aquelas que justificam o ditado popular nefasto que nos persegue, até porque não de todo falso: “quem sabe, faz; quem não sabe, ensina”. Por isso, há que continuar fazendo – fazendo arte! – para dar o melhor exemplo a nossos alunos; da mesma forma, há que continuar estimulando quem faz – arte! – para recuperar não apenas para a literatura, mas também para o magistério, a sua condição original de... arte.
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