Karl Marx manda lembranças
Cesar Benjamin*
" (...)
O que estamos vendo não é erro nem acidente. Ao vencer os adversários, o sistema pôde buscar a sua forma mais pura, mais plena e mais essencial, com ampla predominância da acumulação D – D’. Abandonou as mediações de que necessitava no período anterior, quando contestações, internas e externas, o amarravam. Libertou-se. Floresceu. Os resultados estão aí. Mais uma vez, os Estados tentarão salvar o capitalismo da ação predatória dos capitalistas. Karl Marx manda lembranças."
publicado na Folha de S. Paulo em 20.09.2008
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* César Benjamin é autor de dezenas de artigos, publicados no Brasil e no exterior, e dos livros E o sertão, de todo, se impropriou à vida: um estudo sobre a seca no Nordeste (Petrópolis, Vozes, 1985, em colaboração com Sérgio Goes de Paula), Diálogo sobre ecologia, ciência e política (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1992, quarta edição), A opção brasileira (Rio de Janeiro, Contraponto, 1998, décima edição) e Bom combate (Rio de Janeiro, Contraponto, 2004).
Trabalhou na Fundação Getúlio Vargas, na Escola Nacional de Saúde Pública, na Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, na Prefeitura do Rio de Janeiro e na Editora Nova Fronteira. Deu cursos regulares em história do pensamento econômico, macroeconomia, economia brasileira, jornalismo científico, meio ambiente e ciências sociais em universidades e empresas. É doutor honoris causa pela Universidade Bicentenária de Aragua, Venezuela.
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O artigo, na íntegra:
As economias modernas criaram um novo conceito de riqueza. Não se trata mais de dispor de valores de uso, mas de ampliar abstrações numéricas. Busca-se obter mais quantidade do mesmo, indefinidamente. A isso os economistas chamam “comportamento racional”. Dizem coisas complicadas, pois a defesa de uma estupidez requer sofisticação. Quem refletiu mais profundamente sobre essa grande transformação foi Karl Marx. Em meados do século XIX, ele destacou três tendências da sociedade que então desabrochava: (a) ela seria compelida a aumentar incessantemente a massa de mercadorias, fosse pelo aumento da capacidade de produzi-las, fosse pela transformação de mais bens, materiais ou simbólicos, em mercadoria; no limite, tudo seria transformado em mercadoria; (b) ela seria compelida a ampliar o espaço geográfico inserido no circuito mercantil, de modo que mais riquezas e mais populações dele participassem; no limite, esse espaço seria todo o planeta; (c) ela seria compelida a inventar permanentemente novos bens e novas necessidades; como as “necessidades do estômago” são poucas, esses novos bens e novas necessidades seriam, cada vez mais, bens e necessidades voltados para a fantasia, que é ilimitada. Para aumentar a potência produtiva e expandir o espaço da acumulação, essa sociedade realizaria uma revolução técnica incessante. Para incluir o máximo de populações no processo mercantil, formaria um sistema-mundo. Para criar o homem portador daquelas novas necessidades em expansão, alteraria profundamente a cultura e as formas de sociabilidade. Nenhum obstáculo externo a deteria. Havia, porém, obstáculos internos, que seriam, sucessivamente, superados e repostos. Pois, para valorizar-se, o capital precisa abandonar a sua forma preferencial, de riqueza abstrata, e passar pela produção, organizando o trabalho e encarnando-se transitoriamente em coisas e valores de uso. Só assim ele pode ressurgir ampliado, fechando o circuito. É um processo demorado e cheio de riscos, pois ninguém tem controle sobre o ambiente econômico em que opera. Muito melhor é acumular capital sem retirá-lo da condição de riqueza abstrata, fazendo o próprio dinheiro render mais dinheiro. Marx denominou D – D’ essa forma de acumulação e viu que ela teria peso crescente. À medida que passasse a predominar, a instabilidade seria maior, pois a valorização sem trabalho é fictícia. E o potencial civilizatório do sistema começaria a esgotar-se: ao repudiar o trabalho e a atividade produtiva, ao afastar-se do mundo-da-vida, o impulso à acumulação não mais seria um agente organizador da sociedade. Se não conseguisse se libertar dessa engrenagem, a humanidade correria sérios riscos, pois sua potência técnica estaria muito mais desenvolvida, mas desconectada de fins humanos. Dependendo de quais forças sociais predominassem, essa potência técnica expandida poderia ser colocada a serviço da civilização (abolindo-se os trabalhos cansativos, mecânicos e alienados, difundindo-se as atividades da cultura e do espírito) ou da barbárie (com o desemprego e a intensificação de conflitos). Maior o poder criativo, maior o poder destrutivo. O que estamos vendo não é erro nem acidente. Ao vencer os adversários, o sistema pôde buscar a sua forma mais pura, mais plena e mais essencial, com ampla predominância da acumulação D – D’. Abandonou as mediações de que necessitava no período anterior, quando contestações, internas e externas, o amarravam. Libertou-se. Floresceu. Os resultados estão aí. Mais uma vez, os Estados tentarão salvar o capitalismo da ação predatória dos capitalistas. Karl Marx manda lembranças.
Cesar Benjamin*
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O que estamos vendo não é erro nem acidente. Ao vencer os adversários, o sistema pôde buscar a sua forma mais pura, mais plena e mais essencial, com ampla predominância da acumulação D – D’. Abandonou as mediações de que necessitava no período anterior, quando contestações, internas e externas, o amarravam. Libertou-se. Floresceu. Os resultados estão aí. Mais uma vez, os Estados tentarão salvar o capitalismo da ação predatória dos capitalistas. Karl Marx manda lembranças."
publicado na Folha de S. Paulo em 20.09.2008
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* César Benjamin é autor de dezenas de artigos, publicados no Brasil e no exterior, e dos livros E o sertão, de todo, se impropriou à vida: um estudo sobre a seca no Nordeste (Petrópolis, Vozes, 1985, em colaboração com Sérgio Goes de Paula), Diálogo sobre ecologia, ciência e política (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1992, quarta edição), A opção brasileira (Rio de Janeiro, Contraponto, 1998, décima edição) e Bom combate (Rio de Janeiro, Contraponto, 2004).
Trabalhou na Fundação Getúlio Vargas, na Escola Nacional de Saúde Pública, na Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, na Prefeitura do Rio de Janeiro e na Editora Nova Fronteira. Deu cursos regulares em história do pensamento econômico, macroeconomia, economia brasileira, jornalismo científico, meio ambiente e ciências sociais em universidades e empresas. É doutor honoris causa pela Universidade Bicentenária de Aragua, Venezuela.
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O artigo, na íntegra:
As economias modernas criaram um novo conceito de riqueza. Não se trata mais de dispor de valores de uso, mas de ampliar abstrações numéricas. Busca-se obter mais quantidade do mesmo, indefinidamente. A isso os economistas chamam “comportamento racional”. Dizem coisas complicadas, pois a defesa de uma estupidez requer sofisticação. Quem refletiu mais profundamente sobre essa grande transformação foi Karl Marx. Em meados do século XIX, ele destacou três tendências da sociedade que então desabrochava: (a) ela seria compelida a aumentar incessantemente a massa de mercadorias, fosse pelo aumento da capacidade de produzi-las, fosse pela transformação de mais bens, materiais ou simbólicos, em mercadoria; no limite, tudo seria transformado em mercadoria; (b) ela seria compelida a ampliar o espaço geográfico inserido no circuito mercantil, de modo que mais riquezas e mais populações dele participassem; no limite, esse espaço seria todo o planeta; (c) ela seria compelida a inventar permanentemente novos bens e novas necessidades; como as “necessidades do estômago” são poucas, esses novos bens e novas necessidades seriam, cada vez mais, bens e necessidades voltados para a fantasia, que é ilimitada. Para aumentar a potência produtiva e expandir o espaço da acumulação, essa sociedade realizaria uma revolução técnica incessante. Para incluir o máximo de populações no processo mercantil, formaria um sistema-mundo. Para criar o homem portador daquelas novas necessidades em expansão, alteraria profundamente a cultura e as formas de sociabilidade. Nenhum obstáculo externo a deteria. Havia, porém, obstáculos internos, que seriam, sucessivamente, superados e repostos. Pois, para valorizar-se, o capital precisa abandonar a sua forma preferencial, de riqueza abstrata, e passar pela produção, organizando o trabalho e encarnando-se transitoriamente em coisas e valores de uso. Só assim ele pode ressurgir ampliado, fechando o circuito. É um processo demorado e cheio de riscos, pois ninguém tem controle sobre o ambiente econômico em que opera. Muito melhor é acumular capital sem retirá-lo da condição de riqueza abstrata, fazendo o próprio dinheiro render mais dinheiro. Marx denominou D – D’ essa forma de acumulação e viu que ela teria peso crescente. À medida que passasse a predominar, a instabilidade seria maior, pois a valorização sem trabalho é fictícia. E o potencial civilizatório do sistema começaria a esgotar-se: ao repudiar o trabalho e a atividade produtiva, ao afastar-se do mundo-da-vida, o impulso à acumulação não mais seria um agente organizador da sociedade. Se não conseguisse se libertar dessa engrenagem, a humanidade correria sérios riscos, pois sua potência técnica estaria muito mais desenvolvida, mas desconectada de fins humanos. Dependendo de quais forças sociais predominassem, essa potência técnica expandida poderia ser colocada a serviço da civilização (abolindo-se os trabalhos cansativos, mecânicos e alienados, difundindo-se as atividades da cultura e do espírito) ou da barbárie (com o desemprego e a intensificação de conflitos). Maior o poder criativo, maior o poder destrutivo. O que estamos vendo não é erro nem acidente. Ao vencer os adversários, o sistema pôde buscar a sua forma mais pura, mais plena e mais essencial, com ampla predominância da acumulação D – D’. Abandonou as mediações de que necessitava no período anterior, quando contestações, internas e externas, o amarravam. Libertou-se. Floresceu. Os resultados estão aí. Mais uma vez, os Estados tentarão salvar o capitalismo da ação predatória dos capitalistas. Karl Marx manda lembranças.
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