pão e circo - sonia regina e jorge vicente


I

há calçadas quebradas no chão do meu país
por onde se vê o que ‘em se plantando tudo dá’[1]

: uma terra de ‘palmeiras onde canta o sabiá’[2]

nos campos, o trigo e o milho original
nas cidades, luz e cena, pão e circo,
temporal

este é um povo afetivo, de trabalho e riso,
amor e risco, pobreza, fome e coisa e tal

o que não aplaca a sede que paira, no ar

somos seres d’água, sim, mas lavráveis
pelos quais não basta navegar.

sonia regina

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[1] "Nesta terra, em se plantando, tudo dá." Foi o que escreveu Pero Vaz de Caminha na carta que enviou ao rei de Portugal anunciando a descoberta do Brasil

[2] in Canção do Exílio - Gonçalves Dias




II

somos seres de música ténue
aérea, solar, majestosa

somos o som silente do silêncio
dos plátanos. a placidez da água

roubando a acácia dos teus olhos.
dorme-me na quentura do teu abraço

humilde. dá-me o pão que descansa
nos olhares dos artistas.e dança

o circo. e rouba-me a violência.
dá-me vida. pratica o amor. transforma

a dança no rito das folhas.

jorge vicente



III


gira o mundo, passa o tempo,
ultrapassa o espaço, se mergulha
a nossa alma na música dos teus versos

fica o rio ensolarado
no calor do abraço
humilde, lasso
fica o momento selado
sopra fronteiras, voa o olhar

no estado da arte penetra a manhã

despertam os sonhos
que se apoderam das mãos
chamam o sal da terra,
num protocolo de néctares

sobre o corpo do poema faz-se o pão
de milho, poesia que tremula
e se entrega ao espanto da língua

em contraponto ao arrepio do beijo
o circo tem sabor de saudade

sonia regina


IV

é um circo das águas. o circo das mil
e uma ilhas que desaguam no néctar dos
teus olhos. são pedro jorra o amor das

pedras e transcende-te. inventas um
trapézio das pedras, onde a terra
lança os corpos dos dançarinos feitos

filhos da terra. o sabor telúrico da
arte.

jorge vicente


V

mina a água da terra, dançarina
por entre as pedras, escorre

vaga presença líquida, ensina-me
a domar os cabelos molhados, nus
de qualquer sorriso

com ela aprendi o resgatável
e o impreciso vôo no trapézio,
a descida ao fundo do escrito

que saboreia a sílaba que deságua
no leito, ao colher a gargalhada
[entre pálpebras fechadas]
do `obscuro objeto do desejo' [1].

sonia regina

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[1] filme de Luis Bunuel, Esse Obscuro Objeto do Desejo (Cet Obscur Objet du Désir)



VI

esse desejo como um anjo exterminador que
buñuel desenhou nas suas fábulas. os homens

mentem na sua própria dança resgatada. o ventre
da expressão corporal, uma folha caída no

âmago dos olhos. apanho-a e entrego-ta. e
invento o meu circo na apanha da azeitona

e do mel. um riso telúrico invade todo o
continente e as ilhas dos teus olhos.

jorge vicente


VII

não sei do que mentem os homens, ou do que vejo

meus olhos têm medo - se aceito o que me entregas,
essa folha do ventre na expressão do corpo -
de serem continente desse riso que não ouço
[e me invade]
se tens no âmago dos teus olhos um circo d’águas
se me desfaço em rosas e das pétalas fazes ilhas
a jorrar o néctar com tua dança resgatada

pois se São Pedro é posseiro, ele pactua com o Anjo
na apanha da azeitona e do mel e, com Buñuel, nas fábulas

que não exterminam a expressão e o desenho do desejo

sonia regina


VIII

apenas extermino o anjo caído a queda
feita das urzes dos teus olhos o sorriso

desgarrado sem a imaginação das flores.
apenas o circo invade o palco das águas

o poeta cai e sempre se levanta, mesmo que
o véu seja apenas dele e a praia surja no

interior do olhar do corcovado. do alto
do cristo redentor, um palco se avizinha:

o teu palco que abraça o anjo caído, o
deus das águias e dos peixes. a rosa dos

ventos que nos trouxeram os navegadores
o sabor da história a hóstia e o carnaval.

segue comigo, minha pomba, e descobriremos
se o pranto é um costume dos homens ou se

a tradição apenas ri quando as folhas saltam.

jorge vicente

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