Nelson Saúte - O homem que restou da sombra



- Estou a apodrecer vivo.
Olhei para trás e dei de chofre com o homem que dissera aquela frase. Mais do que uma pessoa parecia um fiapo de uma extinguível sombra. Uma silhueta de si próprio, réstia de alguém que fora um ser humano. Olhei-o nos olhos. Olhei-o fixadamente. Tinha um olhar que encenava a sua própria tragédia. Um olhar que denunciava o estado do seu corpo já desfeito pelo tempo, não obstante a idade. Estava curvado e abanava ao leve passar do vento. Findava a manhã com sol e algum frio naquele sábado. Tinha alguma luz naqueles olhos que acenavam à vida, que lhe fugia. Certamente.
Estávamos os dois em plena avenida Samora Machel, na baixa de Maputo. A cidade imitava o bulício de outros dias. Interrompi meus pensamentos sobre o esqueleto do prédio Pott, que também apodrecia - como as palavras pungentes do homem que parara diante de mim -, resistindo as suas paredes mijadas e defecadas, sujas e ultrajadas, depois de longos anos de abandono. Também o prédio, cuja construção começara em 1905, 100 anos antes justamente, se queixava das mazelas do corpo. Deixei-me do corpo de betão e dediquei-me àquele homem que entrara na minha solidão.
Eu estava à espera que o Moisés e os seus companheiros acabassem de lavar o meu carro. Pensava vagarosamente sobre as mutações constantes da cidade. Lá do alto da avenida surgia, hierático, o edificio da Câmara Municipal, vulgo Conselho Executivo, terminologia que veio a reboque da revolução.
- O senhor doutor não está a ver quem sou eu?
Não hesitei em ser sincero:
- A cara não me é estranha. O nome não me lembro, seguramente.
Fixei a sua expressão sofredora. Era um homem escuro, demasiadamente escuro. Magro, pelo pescoço se advinhavam as marcas das veias. No olhar, a sombra dele próprio. Fiquei aturdido perante aquela imagem, de um homem que sobrara naquele esqueleto, da vida que resistia naquela expressão.
- Estou a sofrer, senhor doutor.
Nada disse. Permaneci em silêncio.
- Estou a vir do hospital, tenho bolhas por todo o corpo...
Sem acabar a frase, baixou-se vagarosamente e puxou as calças pela bainha. Fiz-lhe um sinal com as mãos e a cabeça:
- Não precisa, meu caro senhor.
De nada me valeu a advertência. O homem mostrou as suas partes íntimas, naquele instante breve entre a sua primeira frase e o meu inescondível espanto.
- Está a ver? Tenho o corpo todo assim. Preciso de 70 mil meticais para o hospital. Não posso prometer, mas um dia eu vou pagar.
É usual, por estes dias, encontrar na rua, gente que tudo faz para mostrar suas incapacidades, na desesperada tentativa de pedir. A profissão de pedinte ocupa muitos de nós nas ruas. Até crianças vão para a rua para se valerem do bom espírito dos incautos. Nestas circunstâncias, minha atitude normal seria refugiar-me:
- Não tenho.
Mas aquele mapa do sofrimento impresso naquele corpo deixou-me desassossegado. Suas mãos tinham manchas que denunciavam a doença. A doença, digo, sem a nomear. Aqui, entre nós, é assim: todos sabemos, sussurramos, não dizemos alto. Parece que nomear algo é chamar a desgraça para nossa casa. Imaginei que doença era, mas nada disse.
O homem tinha os ombros recurvos, que os fez dobrar para intensificar a sensação da dor, perante meu indisfarçavel espanto. Pensei comigo: por que razão não darei os 70 mil meticais?
Provavelmente, o destino daquele dinheiro seria bem outro do que o hospital. Mas lá tranquilizei minha consciência por estar a partilhar com o próximo as parcas benesses que me couberam neste mundo.
- Muito obrigado. Nem sei como lhe agradecer, doutor.
- Não tem que me agradecer. Desejo-lhe rápidas melhoras.
O homem baixou-se numa vênia, o movimento foi feito com a lentidão das forças que lhe restavam. Vestia uma camisa às riscas, de flanela, uma camisola por dentro, umas calças jeans, sapados pretos e meias grossas igualmente escuras. Olhei outra vez para a sua mão e tornei a reparar nas manchas que lhe brotavam daquela zona do corpo.
Enquanto o bulício da cidade se imiscuía nos meus pensamentos, deixei-me por uns momentos fixado na imagem daquele homem que dobrava a esquina da Zedequias Maganhela, em direcção ao Mercado Central, o famoso Bazar da Baixa. Eu continuava ali na Samora Machel, ouvindo ao longe as buzinas dos carros, o trânsito caótico do meio dia, da cidade toda que descera à baixa, dos carros que não tinham onde estacionar, porque a praça 25 de Junho, onde muitos estacionam, estava encerrada.
Neste dia de hoje não havia a feira do artesanato. Nem me lembrei quando ali cheguei. A praça está em obra. Finalmente, vamos descançar do martírio daqueles buracos, pensei. Olhando para a enorme mancha de gente e de carros que se cruzavam numa azáfama naquela hora do sábado. Não me lembro agora se os semáforos funcionavam. Creio que não. O normal, por estes dias, é ter os semáforos avariados.
O homem que entrara sem avisar na minha jornada de solidão convocou-me para o mergulho no destino e na tragédia de muitos de nós, que somos levados na fúria da pobreza e da doença. Tenho que escrever esta história, comecei a inquietar-me. Mas nada sei do personagem. Que interessa? Vou inventar-lhe uma história, um destino.
- Sou da família Nhantumbo, dissera.
Confesso que anuíra com a cabeça mas na verdade não o conhecia. A cidade é pequena, quase todos nos conhecemos, é provável que este homem tenha sido alguém que tivera ou travara algum conhecimento comigo no passado. É provável, mas não me recordo. Olhava fixadamente para o cimo da Samora Machel e tentava descortinar nas teias da memória algo que me trouxesse aquele rosto aos dias do presente.
Há muito que não escrevo, pensei, a matéria prima está aqui, nos dias que passam rente ao meu nariz. Aqui estão as histórias, as vidas destes homens desencontrados com o seu tempo. O homem tem que ter um nome e uma história. O homem tem que ter uma vida, muitas manhãs em que ele acordou, depois de sonhos e pesadelos que, por certo, atravessaram a sua trajectória até aquele encontro. O homem tem que ter sentimentos. Este homem amou e desesperou. Este homem terá filhos? Quantos mulheres ainda esperam por ele para o sustento dos filhos que chupam as tetas magras e sem leite?
Lembrei-me então da mulher grávida e imensamente magra que se cruzara comigo horas antes. Era também o mapa de uma mulher sofrida, a barriga era maior que o seu corpo e caminhava.
Como todos nós caminhámos. Deixando no caminho um pouco de nós. Aquilo que resta da nossa própria sombra.

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Nelson Saúte (Maputo, 26 de Fevereiro de 1967) é um escritor e professor de ciências da comunicação moçambicano.
No início da sua vida profissional, em Moçambique, trabalhou na revista Tempo, no jornal Notícias, na Rádio Moçambique e na Televisão de Moçambique.
Em Portugal, onde se licenciou em Ciências da Comunicação, na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, foi redactor do Jornal de Letras e do Público.
Fonte: Wikipédia, a enciclopédia livre.

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