Todo poeta tem um quê de gourmet




O vento era forte, aquele calor de há pouco o trouxera. Núbia sabia.
- A gente aqui acompanha as viradas do tempo como em nenhum lugar do Rio de Janeiro.
- Está vindo de São Paulo... – respondeu Eduardo, sentado à porta da casa.
Núbia estremeceu. Ficava surpresa quando ele lhe falava assim, docemente. No fundo ela achava que não merecia: era muito seca com ele; por vezes dura.
- Não tem mais nada que fazer? Por que não vai pra ali, pro outro lado? – ele falou.
Olhou-o zangada. Aquilo não podia ser com ela! Armava-se já, como um porco-espinho.
Mas Eduardo falava com o vento. Aprendera com ela a apreciar os fenômenos da natureza e certamente estivera sentado à porta da casa para observá-lo, para sentir sua força. A força do mar e a força dos ventos – inabaláveis - transmitiam-lhe qualquer coisa. Davam-lhe confiança. E esperança. Ficava sempre com a sensação de que tudo ia dar certo e, as mágoas... o vento levaria.
Pôs o braço para fora da casa:
– Ainda não está molhado – disse ele da chuva que não vinha.
Núbia gostava desse jeito do marido se expressar. Era mesmo um poeta! Havia sido o que a conquistara.
Foi para o quintal, tirou as roupas da corda e pendurou-as debaixo do telheiro. Iminência de chuva era sinônimo de ritual caseiro. Havia muitas coisas a recolher e ela dispunha tudo metodicamente em uma bancada, de um jeito só seu. Afirmava que lhe facilitava a arrumação, depois.
Eduardo a olhava da cozinha e em silêncio passava um café com amêndoas.  Para ambos. Sabia que assim seria e lhe bastava, pois tinha certeza de que um convite retornaria sem qualquer delicadeza, como um bumerangue colérico:
- E lá isso é hora de fazer café? – ela vociferaria.
Tão poucas coisas compartilhavam... Viviam juntos, somente. No Rio.
Lamentava a implicância de Núbia com a casa que mantinha em Minas, na pequena chácara. Arrendara ao primo parte do terreno e fizera-lhe uma moradia singela. Assim o ajudava, tinha caseiro, produção hortigranjeira e uma casa cuidada – para a qual ia sozinho. Isso o afastava de Núbia muitas semanas por ano.
Dadinho, como Núbia o chamava, era copeiro de um médico muito rico, um solteirão inveterado que vivia correndo o mundo. Tinham um contrato fora do vulgar: Eduardo só trabalhava quando o patrão estava no Brasil e folgava nos demais. Dr. Hélio o ajudava muito, mas Eduardo correspondia: era bom profissional e empregado disponível. Morava na casa do patrão quando ele estava no Rio e o atendia a qualquer hora do dia ou da noite, além de ir com ele em pequenas viagens.
Era o único que pernoitava no trabalho. A cozinheira, que também arrumava, vinha diariamente; a faxineira cuidava da limpeza da casa e das roupas nas três vezes por semana que trabalhava. Eduardo fazia as compras e dirigia o carro, quando o destino de Dr. Hélio tinha estacionamento incerto. Sim, claro, além de servir os lanches, as refeições e bebidas.
Lidar com comidas e petiscos agradava Dadinho: todo poeta tem um quê de gourmet. Tudo o que aprendia, queria fazer em casa. Alguns toques refinados e não necessariamente dispendiosos transformavam as refeições em iguarias. Mas a compra do vidrinho de alcaparras, fundamental para o seu fettuccine, havia sido vetada por Núbia.
- Precisamos parar de desperdiçar! Não, amor, as alcaparras são muito caras -  dissera no dia em que pôs fim à imensa ventura contida naquele prato de massa fresca molhada com creme de leite e presunto, temperada com cebolas e alcaparras.
Mas Eduardo não desistia: com os sabores e as palavras se entendia às mil maravilhas e, se não podia comprar os ingredientes, variava. Idéias não lhe faltavam, nem criatividade. Sorvetes de alecrim e de flores de laranjeira eram as últimas novidades.
Sublimava. Encontrava nas iguarias e requintes da leitura os prazeres que lhe faltavam. Solitárias aventuras nos dias e noites que custavam a se encontrar, de tão longos.


Sonia Regina


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Este conto integra a série "NÚBIA DOS PRAZERES". Há um publicado anteriormente, que pode ser lido aqui.
A série - publicada em TEMÁTICOS, na revista Letras et cetera, pode ser acompanhada aqui


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