Do espelho, a outra face

Suzana Fuentes*


"Do Espelho", de Vilém Flusser, delineia inicialmente a possibilidade de traçar a história do pensamento a partir do ponto de vista do espelho. Refletir, especular, contrapor - ações que reorganizam espaços, ângulos e incidências de luz diante da face reflexiva do espelho. O espelho, porém, enquanto posição, é ser que nega.

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* Susana Fuentes é tradutora de inglês, russo e alemão. Passeia por diferentes linguagens no campo das artes, como mímica, dança, teatro, música e circo. Doutora em Literatura Comparada (UERJ), é autora do livro de contos Escola de Gigantes, publicado pela 7Letras, 2005. Seu conto “Sumaúma e reco-reco” foi publicado pela 7Letras na Ficções n.13.
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O ensaio, na íntegra:




"Do Espelho", de Vilém Flusser, delineia inicialmente a possibilidade de traçar a história do pensamento a partir do ponto de vista do espelho. Refletir, especular, contrapor - ações que reorganizam espaços, ângulos e incidências de luz diante da face reflexiva do espelho. O espelho, porém, enquanto posição, é ser que nega. E é isso que interessa a Flusser: o espelho, ser em oposição. Posição negativa, ele inverte as perguntas que o demandam. Se ele reflete, é porque nega, não se deixa atravessar. Refletir é negar, conclui Flusser.

No entanto, o que gera a negação, o que possibilita a reflexão? Para ir de encontro à resposta, o leitor é convidado ao movimento de virar o espelho. Ver quem vira o espelho - ver o ato de virar - o ato de ver. Lá está, na outra face: o nitrato de prata, o nada opaco e sem luz, fonte de toda a negação possível. E daí? Daí, é o nada que fundamenta a reflexão. Nisso, eu diria que a função do espelho permanece: dos dois lados ele mostra quem sou. Porém, se de um lado ele me permite ajustar ou tirar a máscara, do outro, ele me põe em contato com o vazio fundador - o nada: o nitrato que faz do homem o espelho.


O homem, portanto, é ser que reflete: ser em oposição , posição negativa. Como indica Flusser, o homem não permite que as coisas que o cercam , que sobre ele incidem, passem por ele. Daí o interesse na região atrás do espelho, no nitrato de prata, nesse nada opaco e chato. Porque é ele o fundador do pensamento. Aquilo que não permite que o homem seja atravessado pelas coisas sem que as intercepte e as reflita de volta.

Para Flusser, todo pensamento tem origem poética. A poesia é o nitrato de prata do pensamento. Dito isto, como não pensar a página branca como o espelho virado? Tal qual o quadro branco na parede branca: o nada que incita a projeções. Observemos, assim, com Flusser, o nada que nos fundamenta enquanto seres que refletem. É um convite a desnudar o espelho, não apenas virando-o , mas tirando a proteção que encobre o nitrato de prata.

Ora, não fosse pela convicção de que do espelho, agora, só interessa a outra face, Flusser teria possivelmente investigado a história do pensamento do ponto de vista do espelho. Porém, o texto se nega a contar esta história. Ele mesmo é um espelho invertido. Nega-se a contar a história do pensamento do ponto de vista do espelho. É o ponto de vista do nitrato de prata que interessa. E, do ponto de vista do nitrato de prata, o pensamento não tem história: vem do nada, é fundado por tautologias. Assim, sai-se do círculo cartesiano: a dúvida contra o pensamento está lançada.





Ficções Flusserianas: sobre Ficções filosóficas, de Vilém Flusser

Programa de Pós-Graduação em Letras - Universidade do Estado do Rio de Janeiro
fic-susana

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