A colheita das maçãs, feita manualmente de fevereiro a abril, não acontece aos domingos. A mulher caminha pela plantação vazia de pessoas, lentamente. Deseja somente cumprir aquela pouca disposição de uma sensibilidade que exacerbou durante os últimos anos. Não quer estar consigo mesma nem com ninguém e a tarde nublada e quente está propícia a quietudes.
Sem espanto aproxima-se de uma macieira carregada. Os olhos brilham, refletindo o vermelho que exubera, mas os dedos não correspondem e evitam o tato. A expressão de enfado toma-a por inteiro, não tem interesse pela cor ou aroma dos frutos: deseja tão-somente um tronco para recostar-se e ler.
De vez em quando lê os clássicos. Ama-os em suas entranhas. Aprendeu a guardar alguns personagens na hora da dor pura, junto com outras imagens fortes que não respeita tanto.
Jean Valjean é um deles, assim como Cosette[1]. Pensa nela, no balde d’água, na pousada, nos donos que a maltratam, nas filhas deles e suas intrigas. Lembra-se vagamente da convivência adolescente com o próprio pai, a madrasta e sua filha. Ele nunca lhe deu uma boneca, ou abraçou-a, e muito, muito internamente e num tempo antigo, a mulher inveja Cosette por ter tido Jean Valjean como seu pai adotivo.
Continua a leitura, os personagens e as recordações a sussurrarem-lhe coisas. O tom é agudo e misterioso, por imposição dela: convém ao dom profético da literatura.
Poucas horas depois se levanta cabisbaixa, o olhar interrogativo afivelado aos ombros curvados. Move-se em círculos como um cata-vento que gira sem mirar o norte – não vislumbra o futuro e isso a preocupa.
Os ventos alísios vindos do sudeste chegam com a noite e dominam a paisagem. Aprendeu que são quentes e úmidos, aumentam a temperatura e indicam chuva forte. ‘Será?’, pensa olhando para o céu vago, coberto de nuvens. ‘Um momento de cada vez’, responde para si mesma. E se entrega ao vento, cujas rajadas são como frases curtas. Lembra-se da expressão que aprendeu na infância: ‘ISSHOUKENMEI GANBATTE NE’. [2]
A mulher caminha pela plantação vazia de pessoas, suavemente, sob o temporal.
Chega a casa, molhada e solta.
Dizem que os ventos desbloqueiam naturalmente o mais íntimo do estio. O obscuro, liberto e lavado, não mais paira sobre o verão. Nem sobre ela.
Sonia Regina
22032012
22032012
Imagem: Cosette, de Émile Bayard (1837-1891)
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[1] Cosette e Jean Valjean são personagens do livro Os Miseráveis, de Victor Hugo.
[2] "vá em frente, não se desanime, vai dar tudo certo", em japonês. O povo japonês costuma dizer ISSHOUKENMEI frequentemente para dar força, dar mais energia positiva e incentivar seus filhos, seus amigos e seus parentes quando estes estão passando por uma fase ou uma situação difícil.
FONTE: Curso de Língua Japonesa - Método Rosa Sonoo - http://www.sonoo.com.br
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