Claudio Parreira
Mui Amado e Digníssimo El Rey:
Como já faz um tempão desde que deixei aquele porto porco na galante caravela infestada de insetos & bestas gentilmente cedida pela vossa clemente realeza, já não sei mais o seu atual nome; guardo apenas e mui vagamente o vosso título e vão aqui pela minha cabeça oca algumas supostas e saborosas suspeitas: podes ser agora Dão Manuel O Piedoso, porque as mudanças no trono sucedem sempre súbito, ou ainda Dão Joaquim III, IV ou quinto, Dão Jão D’Alhos e Bugalhos e, com todo o respeito que guardo à Vossa Alteza e à sua augusta família, Dão Orraiquiuspartanostodos ou mais desavergonhadamente falando Dão Aputaquelospariu Lisboa, salve salve, que seja. Digo isso e assim dessa forma, El Rey, porque o Mar-Oceano vai nos turvando os pensamentos de tal maneira que passamos a tomar os peixinhos vivos e crus por refinadas iguarias lisboetas e as estrelas todas do céu adquirem contornos femininos tão palpáveis que não raro homens de fibra e juízo por elas se apaixonam a ponto de perder a razão e não raramente a própria vida. Mas não cabe a mim, que sou homem de letras e de razão, discorrer sobre assuntos competentes à marinharia. Não é disso que trata esta carta, portanto, seja Vossa Alteza esse ou aquele, Dão Rey ou Imperador, de formas tais que vou tratá-lo aqui simplesmente por El Rey, que pode não estar de todo nos conformes mas não lhe falta com o devido respeito. Como é do vosso conhecimento, coube a mim a honrosa tarefa de enviar daqui praí as notícias e sucessos fantásticos deste admirável Mundo Novo que por ora tenho diante dos meus olhos. Como El Rey não os pode ver, não por ser cego, que Deus Nosso Senhor assim o conserve, eu os vejo em seu lugar e registro aqui com a modesta riqueza de detalhes cuja característica foi o que me deu a honra de prestar serviços de qualidade à Corte da qual El Rey é o maior e mais bonito, se me permite a intimidade, representante. Pois vamos então direto aos fatos porque o céu azul daqui é um escândalo de tão belo e não é muito agradável perder um dia de sol e mar pra ficar no abafamento de um escritório dando à pena estas poucas e bem traçadas linhas. Tá certo que o escritório tem ar-condicionado, que é a primeira novidade que trago ao seu conhecimento. E muitas outras virão, se me permite. Ao contrário do que eu mesmo pensava, esta aqui não é uma terra de selvagens nem de ignorantes. Nada disso: aqui tem gente mui civilizada, tanto ou mais que em Portugal e outros sítios da Europa. Se querias, El Rey, notícias de gentios nus, mulheres de quatro peitos ou outras aberrações tão freqüentes nos bestiários, enganou-se. Mulheres têm sim, aos montões, algumas delas quase nuas, mas nem um pouco primitivas. É possível discutir com algumas delas a filosofia de Platão, um pouco de Santo Agostinho, elaborar sofisticadíssimas cartas de navegação e et cetera. Mas o melhor mesmo que se pode fazer com elas El Rey o sabe muito bem, posto que sua vasta família real não brotou do chão como as mandiocas ou as batatas.
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