Eva Batlicková

A REBELDIA POÉTICA DE VILÉM FLUSSER

Eva Batlicková *





Vilém Flusser, um filósofo cosmopolita de origem tcheca, ficou famoso especificamente como um respeitável teórico dos novos media. Sua obra marcou o público pela crítica comprometida às formas sofisticadas de pressão produzidas pela sociedade atual. Concentrou-se sobretudo na mais eficiente delas, isto é, na manipulação de pensamento humano pelos media.

  No entanto, a personalidade significativa de Vilém Flusser se caracterizaria ainda sob um outro aspecto. Considerando a maneira extática e de cores vivas pela qual submeteu os seus pensamentos ao público, revelou-se este pensador antes de mais um filósofo-poeta. Ele é uma das pessoas que, mediante teorias corajosas e acesso “fora dos conformes” aos problemas, indigna o mundo acadêmico e pela mesma razão arrebata a atenção de grande número de leitores. Língua apurada, construção dramática dos textos e imagens metafóricas empolgantes, estas são as armas principais de Vilém Flusser para a defesa das suas opiniões, muitas vezes controversas.

Tudo isso faz, freqüentemente, em detrimento da seriedade científica, mas como uma estratégia que é parte da sua tática. A ciência é para ele só uma das muitas camadas da língua, um dos muitos discursos – por isso ele não acha verdadeira a filosofia que se limite às estreitas fronteiras da ciência. Flusser exprimiu explicitamente esta sua opinião já em 1963, no livro Língua e realidade – no fim desta obra de quase trezentas páginas constata que sua preocupação não foi a consistência lógica nem o desenvolvimento lógico das suas opiniões, mas sim a discussão sobre os temas desenvolvidos no seu trabalho. Depois ele coloca o seu livro na camada poética da língua e assim confirma-se o que o leitor até então somente suspeitava: trata-se de um poema em forma de ensaio – um poema pré-pós-moderno.

  Flusser, com o seu estilo empolgante e suas teorias originais, vive para ver o sucesso ainda no ano de 1983, após a publicação do livro Filosofia da caixa preta. Exatamente este livro acende a carreira do teórico dos media; deste momento em diante as suas obras e entrevistas, e os estudos sobre ele, gozam de grande interesse do público. Mas o pensamento de Flusser é digno de atenção já muito tempo antes; precisamente sobre essa época eu gostaria de dedicar este breve ensaio.

  A atividade filosófica de Flusser nasce e desenvolve-se no Brasil, que passou a ser a sua pátria por mais de trinta anos, exatamente entre os anos 1940 – 1972. Ele partiu para este país exótico depois da sua fuga da Boémia, ocupada pelo exército fascista alemão e tomada pela loucura anti-semita de que se tornaram vítimas todos os membros da família de Flusser.

  Vilém Flusser chegou ao Brasil quando tinha vinte anos, estabeleceu-se em São Paulo e dedicou-se ao comércio. Nos anos 50 foi arrebatado pela filosofia oriental, mas cedo desgostou-se da sua fatalidade, por isso desligou-se dela e tornou-se um intelectual brasileiro engajado – em tal medida engajado, que foi obrigado a abandonar aquele país por motivos políticos (não tanto por perseguição pessoal, mas pela sua relutância em ter de se conformar com a restrição da liberdade de expressão que atacou sobretudo atividades de intelectuais e estudantes).

Vilém Flusser começou a entrar na vida filosófica e cultural brasileira em fins dos anos 50 e tornou-se conhecido pelos ensaios publicados no jornal O Estado do São Paulo e pelas colaborações na Revista Brasileira de Filosofia. Apesar de ele próprio não ter estudado sistematicamente a filosofia acadêmica (à exceção de alguns semestres na Universidade Carolíngia na Praga da pré-guerra), ganhou no campo da filosofia tanta reputação que a ensinava em várias escolas e institutos brasileiros. Isso se deu provavelmente devido ao fato de a filosofia praticar-se no Brasil mais através das polêmicas em jornais do que através da filosofia acadêmica.

  Porém a criatividade de Flusser não se limitou apenas a contribuições jornalísticas. Durante a sua época brasileira publicou três livros, dos quais o mais famoso e extenso é o já mencionado Língua e realidade. As ambições, que Flusser impôs neste livro, não foram em nada pequenas. O seu trabalho se queria uma ponte entre duas grandes correntes filosóficas daquele tempo, isto é, entre o existencialismo (incluindo suas raízes fenomenológicas) e a filosofia da língua. Esse seu empenho resultou numa análise fenomenológica da língua. Vilém Flusser figurou entre aqueles que se referiram à herança de Wittgenstein, o qual teria recusado a concepção referencial da língua e chegado à definição da palavra como um símbolo cujo significado está inseparavelmente ligado a uma convenção da respectiva comunidade lingüística que o utiliza.

Entretanto, a ontologia flusseriana vai ainda mais longe. Por intermédio da definição de realidade como um cosmo ordenado, chega à identificação da língua com a realidade – em oposição, coloca o caos extralingüístico que não pode ser capturado, atribuindo-lhe o estatuto de mera potencialidade de ser. Esta é a idéia principal da sua obra e dela se desenvolvem muitas outras conseqüências. Uma das mais consideráveis é a negação da existência de uma realidade absoluta, uma realidade em si (da mesma maneira como não existe uma língua em si) – há só realidades concretas ligadas com línguas concretas.

Neste contexto destaca-se o problema da tradução. Para Flusser, a tradução é em princípio realizável somente graças ao parentesco ontológico de certas línguas. À medida que aumenta a distância ontológica entre as línguas, a tradução torna-se mais densa e a realidade, aliada às línguas, passa a ser cada vez mais incompreensível. Flusser demonstra o condicionamento ontológico da realidade pela estrutura gramatical da língua mediante uma análise, um pouco controversa, de alguns conceitos altamente carregados pela tradição metafísica, como, por exemplo, tempo, passividade, atividade, ser, causalidade…

Estudando a fundo quatro línguas (português, alemão, inglês e tcheco), concentra a sua atenção no modo pelo qual as respectivas línguas formam aqueles conceitos como categorias gramaticais. Por fim, ele substitui o significado gramatical das palavras auxiliares pelo seu significado lexical, considerando na base dele o espírito predominante de cada uma das línguas. Esta sua teoria se amplia ainda para outras famílias lingüísticas grandes (a isolante e a aglutinante), demonstrando a divergência básica entre as realidades delas, e portanto a dificuldade, mesmo a impossibilidade, da transmissão de valores entre as culturas ocidental e oriental.

  Mas não só a realidade é determinada imediatamente na língua concreta, conforme Flusser. Do fundamento lingüístico cresce também o nosso intelecto – o intelecto sem a língua seria encerrado no caos solipsista, carente de qualquer significado. Portanto um intelecto nasce junto com palavras e naturalmente com uma gramática que se aprende na fase inicial do seu desenvolvimento.

No entanto, o intelecto não é mero produto da língua. Ele é, ao mesmo tempo, aquele que cria a língua. O intelecto cria a língua por intermédio da sua atividade poética, formando novas palavras que extrai do indizível e desta maneira divulga o império da língua e da própria realidade.

A língua nasce do império do nada e do caos; na sua evolução, retorna de volta ao indizível, um tanto paradoxal e autodestrutivamente. Flusser demonstra este fato apontando os silêncios, “ocidental” de Wittgenstein, “oriental” de Budha, como os limites mais avançados dos dois tipos de pensamento. Como podemos ver, a língua origina-se do nada, fala sobre o nada e volta ao nada, o que revela uma profunda relatividade da nossa realidade e todas as opiniões para ela. Deriva daí a crítica flusseriana ao caráter totalizante da civilização ocidental e sobretudo da sua ciência.

Mediante a sua análise, Flusser esforça-se por deslegitimar o empenho dessa cultura na nivelização de todos os diferentes modos de pensamento e diferentes tipos de cultura, bem como a tentativa de ela incorporá-los todos dentro da sua própria estrutura. Aqui podemos encontrar também as raízes da sua atitude perante os media, os quais constituíriam uma nova forma, mais avançada, da pressão exercida pela sociedade técnica sobre nós.

  No entanto, não nos adiantemos, e voltemos à tese brasileira de Flusser sobre a dependência imediata da maneira de pensar e da percepção da realidade no caráter da língua dentro da qual nascemos. No mesmo ano da publicação de Língua e realidade , Flusser elaborou o tema na forma de um pequeno ensaio, publicado na revista Comentário e intitulado “Esperando por Kafka”. Nesta obra breve, ele aplica a sua teoria para a obra literária concreta.

Flusser vislumbra forte influência do alemão praguense (muito estéril e pedante, se comparado com o alemão comum) na personalidade de Kafka e em toda a atmosfera trágica-absurda dos seus livros. Mas não fez apenas pura e mecânica aplicação de uma teoria científica. Neste caso, tratou especificamente da existencialização do problema até os níveis lingüístico e acadêmico (ou, melhor dito, de uma exteriorização da dimensão existencial implícita em Língua e realidade).

Flusser estava convencido de que a forma participava no significado da mensagem. Neste contexto, valorizava consideravelmente a forma ensaística, que a seus olhos encarnava a revolta existencial contra o academicismo. Flusser coloca em oposição fundamental os estilos acadêmico e ensaístico – o estilo acadêmico estaria baseado na seriedade intelectual e científica, porém as atingira em detrimento da seriedade existencial. No lado oposto se encontraria o ensaio – ele é vivo, o autor está sempre presente nele e exprime de si mesmo uma vivência do problema sobre o qual escreve.

Em outras palavras, para Flusser o estilo acadêmico representa a encarnação da despersonalização, enquanto o ensaio representa a encarnação do engajamento – por isso, a ninguém surpreende que Flusser se coloque ao lado do ensaio e do engajamento. Além disso, a forma ensaística convinha plenamente a seu espírito “poético”, porque abria vasto espaço para a sua expressão multidimensional. O próprio Flusser considerou o ensaio uma forma híbrida entre poesia e prosa, entre filosofia e jornalismo, tratado e panfleto, crítica e original – e, realmente, a sua criação ensaística preenche todos estes aspectos.

Mas a poesia, no seu estilo, destaca-se sobremaneira. Todas as suas obras são entretecidas por imagens e expressões metafóricas intensas que antes podemos encontrar em poemas que em ensaios. Da obra dele pode-se sentir o interesse enorme no efeito lingüístico de tudo o que escreve. No seu livro autobiográfico, Bodenlos, ele nota que a atividade de escritor encontra-se estreitamente ligada a um acesso criativo para a língua e à transformação dela. No caso do português, caracterizado por sintaxe relativamente fixa, foca a sua atenção exatamente a este nível.

Flusser estruturou os seus textos ritmicamente em três planos. No plano de sílabas empenhou-se por um hexâmetro imperfeito, no plano de significado por um ritmo metafórico, e no plano do texto por um ritmo geométrico. O ritmo geométrico estava relacionado à mensagem do texto. O texto adquire ora uma forma de três arestas (por exemplo, anástrofe – clímax – catástrofe) ora uma forma circular (por exemplo, tema – exposição – variação – retorno ao tema).

Desta maneira excepcional, Flusser conseguiu entreligar conteúdo a forma. Os temas dos seus trabalhos variam, mas a maneira de expressão deles acorda no leitor emoções intensas (sobretudo graças à argumentação dirigida mais no plano poético do que no plano lógico). A sensação resultante nos espíritos dos leitores poderia ser descrita como indignação intelectual no fundo de uma forte experiência estética. 

  Porém, cada moeda tem dois lados; tudo isso que torna Vilém Flusser o poeta-filósofo para o mundo de língua portuguesa perde muito do seu brilho no processo da tradução para qualquer outra língua. Mas persiste a imensa herança de pensamentos com a qual Flusser ocupa lugar notável na filosofia mundial.

Sem compreensão das raízes filosóficas criados na época brasileira, ficará a sua mensagem incompleta. Apesar de em muitas línguas Flusser deixar de ser o grande “poeta”, em nenhuma delas deixa de ser um filósofo respeitável.



    

            REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

                Bernardo, Gustavo: Literatura e sistemas culturais, Rio de Janeiro 1998.

                Bernardo, Gustavo – Mendes, Ricardo: Vilém Flusser no Brasil, Rio de Janeiro 2000.

                Flusser, Vilém: Bezedno, tr.B. a J. Kosekovi (do original alemão Bodenlos: eine philosophische Autobiographie, Bollmann Verlag, Bensheim und Düsseldorf, 1992), Praha 1998.

                Flusser, Vilém: “Esperando por Kafka”, Cadernos do Mestrado / Literatura, Rio de Janeiro 1993.

                Flusser, Vilém: Língua e realidade, São Paulo 1963.

                Jaime, Jorge: História da filosofia no Brasil, São Paulo 1999.



    

                * Eva Batlicková graduou-se em Língua Portuguesa, em Brno, na República Tcheca, com um trabalho sobre a fase brasileira do filósofo tcheco-brasileiro Vilém Flusser. O presente texto foi publicado em tcheco na Revista Jedna, em 2002, apresentando a versão tcheca do texto de Flusser "Esperando por Kafka" - em tcheco, Cekáme na Kafku.


 








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