O dia nacional da poesia em 14.3 - nascimento de Castro Alves - é uma homenagem ao poeta
Castro Alves Contemporâneo
por
Bruno Tolentino
Castro
Alves não envelheceu, antes redimiu o tempo. E não o seu tempo, nem o nosso, mas
a noção mesma do tempo como inimigo do belo e carrasco do ser. Sua obra, que
acabei de reler a par com o melhor de Wordsworth e Byron, desafia galhardamente
aquela noção e sai-se bem dos dois confrontos. O século e quebrados que nos
separa daquela assombrosa produção de apenas sete anos de ofício na curta vida
de um jovem vai-se ele mesmo encurtando a cada página relida. Relê-las é
humilhar o tempo que acreditávamos o dono de tudo; a esse roedor só de nossas
pobres certezas e categorias assumidas, assistimos ao poeta i-lo despindo de seu
poder de parálise pela tensão viva de cada estrofe, não raro de cada verso num
inteiro poema. Vamos voltando assim à "Cachoeira de Paulo Afonso" como
retomamos, por exemplo, com Wordsworth a "Tintern Abbey"; nada mudou porque tudo
foi transfigurado de uma vez por todas. Se em "Child Harold" pareceu-me
notar-lhe algo de uma neve senil nas têmporas e nas cadências, em "Mocidade e
Morte" a mesma voz nos chega da dolorosa paixão de um jovem que ouvia e ecoava
na mais fina música da mente os passos da morte certa. O que repõe a questão do
poder "atemporal" — dito de transfiguração — da linguagem de poesia. E no que
consiste isso, que significa essa não temporalidade? Distinto daquela derrapante
dimensão "intemporal" incompatível com o dizer poético (o qual supõe a busca de
uma concreção do pensamento longe de todo idealismo abstrato), esse poder de
manter em vida aquilo de que o mero tempo das cronologias faz carniça,
paradoxalmente reside numa só capacidade a conquistar pela poesia: a de
arraigar-se num dado momento com toda a força das sutilezas do espírito. Quem
diria! Elevar um discurso para fora do alcance do poder letal do tempo
significa, justamente, temporalizar ao mais alto grau as coisas e as linguagens
da mente... Estou dizendo que o poeta máximo é aquele cujo dizer, fundado nas
coisas deste mundo, num presente vivido, tende de modo natural àquelas alturas
do pensamento a que convergem o universal, os mistérios da sensibilidade de um
povo e as sutilezas de seu idioma. A partir de então este pode "mudar" o quanto
seja — e nosso léxico preferencial e até nossa sintaxe mudaram muito desde a
composição de "Vozes d'África" — mas não lhe será mais possível furtar nada ao
impacto emotivo-verbal que a um dado ponto na história nele encarnou-se
perfeitamente.
Estou
arriscando sugerir que só a emoção bruta ("gut emotion") tornada linguagem ao
seu mais puro grau salva das garras de abutre do tempo a fragilidade do ser, a
realidade. A arte (e não só a da palavra, esse nosso "lugar no tempo") consegue
ser nossa única perenidade revisitada; mas apenas quando se queira um antídoto —
o único de que dispomos, contra as tentações da "intemporalidade", vale dizer,
da abstração. Esta última, ainda quando tenha parecido esplêndida, envelhece.
Hugo envelheceu, se pouco; Vigny, que lhe prefiro, algo menos; mas tenho que,
onde ambos lograram driblar até certo ponto a "lenda dos séculos", foi onde
arrancaram à fala do dia-a-dia as coisas e as crenças de um momento e as
limparam de toda banalidade corriqueira, tornando-as noções antes de elevá-las a
cumes de uma impensável grandeza. Já Samuel Johnson é hoje quase risível, uma
ponderosa irrelevância. Browning temo que empalideça a cada nova leitura, seu
olhar ocluso e empostado parece suportar mal as ferrugens combinadas do tempo e
da Idéia... A pretensa poesia de Voltaire morreu como o aborto de uma retórica
abolida. Os exemplos são inúmeros. A abstração e a poesia jamais se
entenderam.
Dito
isto, noto que, como em Wordsworth, o que apaixona em Castro Alves não é sua
paixão pelas idéias, ou mesmo pela vida ou pelo mundo que a continha em suas
contingências; é a radical "tradução" que ele faz destas minúcias nos termos de
uma linguagem exaltada, mas paralela ao coloquial e limpa de maneirismos, e que
por isso mesmo nos chega trazendo tudo aquilo intacto mais de cem anos depois.
Arrisco portanto deduzir que a sua, como a do vate inglês da natureza, foi uma
arte do aqui-e-agora, a visão do fotógrafo ancorado no imediato; mas,
transfigurados no poema pela linguagem nobre a que ambos souberam transpor os
ângulos do cotidiano, esses "instantâneos" no contingente deixam ipso facto de
pertencer apenas a uma época, a um específico "lugar no tempo". E concluo que
esse roedor, o tempo que data e destrói, concede direitos de soberania a todo
triunfo do espírito fundado no particular. Triunfo esse dependente, por sua
parte, da renovação de um certo imprescindível fio transmissor a que chamarei
agora (por empréstimo a Antônio Paulo Graça) de sensibilidade. É um conceito que
venho testando contra as instâncias da melhor arte do passado, e com Castro
Alves obtive um dos melhores resultados.
Em
certo Byron cheguei a suspeitar que a linguagem, em que pese a mestria
incontestável, se tivesse em certa medida adelgaçado com o adensamento
progressivo da língua inglesa desde seus tempos. Ora, nosso idioma não padeceu
menos esse processo, seja com a noção suicida de "ruptura" entre os excessos de
22, seja com as adiposidades e modismos acumulados desde então. Sente-se e
escreve-se cada vez mais crassamente o que se fala mal. E no entanto em Castro
Alves não percebo um emagrecimento da substância, nem um enfraquecimento da
pujança verbal. Sua leveza de tom continua segura e firme, sua pungência
modulada e convincente. Essas espumas flutuam sem medo nas corredeiras do tempo,
foram de contingência em contingência e a todas lhes sobreviveram. Restaria
perguntar-se por quê. Talvez seja que, ao oposto daquele outro genial capenga,
seu verso continha todas as impurezas do real, somadas a uma aderência algo mais
estrita àquelas "coisas da mente" que, ditas com a transparente singeleza e a
famosa paixão que o tornaram ilustre e amado, via assegurar que aquela voz tão
sua, tão temporal, cruzasse, negasse o tempo e viesse inteira até nós, aos
justos festejos deste sesquicentenário. Se não é algo assim o cristalino segredo
da perenidade de Antonio Castro Alves, não sei o que seja.
Em: Jornal de Poesia
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