Guilherme Santos Neves
Assim define leixa-pren o medievalista Segismundo Spina, em sua Apresentação da lírica trovadoresca (1956, p. 405):
Leixa-Pren – Gal. port. (deixa-prende, isto é, larga e retoma). Processo métrico que consiste na subordinação de uma estrofe à anterior, isto é, o trovador inicia uma estrofe reproduzindo o último verso da estrofe anterior, ou simplesmente repetindo no início da estrofe uma palavra ou expressões da estrofe antecedente, até o fim da cantiga.
Sirva de exemplo esta graciosa cantiga do trovador galego Bernal de Bonaval, da qual damos apenas as duas primeiras estrofes ou “cobras”:
Fremosas, a Deus grado,
tan bon dia comigo!
Ca novas mi disseron,
ca ven o meu amigo,
ca ven o meu amigo,
tan bon dia comigo!
Tan bon dia comigo!
Fremosas, a Deus grado,
ca novas me disseron
ca ven o meu amado,
ca ven o meu amado,
fremosas, a Deus grado!
Aliás, vários são os processos – todos eles de origem popular – que se apresentam nas cantigas medievais galego-portuguesas, visando à repetição de vocábulos, de idéias ou de ritmos, entre eles o paralelismo, o encadeamento, o refrão e as chamadas canções redondas.
Ainda remanescem na poesia popular de hoje esses processos, que integravam a poética da Idade Média. Leite de Vasconcelos, Carolina Michaelis, Teófilo Braga – para só citar três dos mais cultos investigadores da poesia medieval e da poesia popular – insistiram em apontar essas presenças nas cantigas do povo, pesquisa que (diga-se de passagem) não é difícil fazer.
Para os exemplos capixabas que aqui, ligeiro, vou referir, nem precisei sair de casa... Temos, há já vinte anos, como doméstica, a portadora de folclore que se chama Dalmácia Ferreira Nunes, nascida e criada em Caçaroca, município de Cariacica. Dotada de excelente memória, sabe ela um punhado copioso de trovas, quase todas sentenciosas (um dia ainda as divulgarei em plaquete). Entre essas quadrinhas, ouvidas, há muitos anos, em Caçaroca, Dalmácia recita estas, onde é evidente o encadeamento do remoto leixa-pren:
Alecrim da beira d’água
cresce o pé, estende a rama.
Isto é tolícia minha
amar a quem não me ama.
Amar a quem não me ama
não é amor, é cegueira.
Querer bem a quem me quer
é justiça verdadeira.
Mais expressivas são estas três trovinhas encadeadas:
A lua deu dois balanço,
segurô-se, não caiu.
Abalançado se veja
quem de meu peito saiu.
Quem de meu peito saiu
não entra mais, que eu num quero.
Meu coração se trancô-se
com chave, prego e martelo.
Meu coração se trancô-se,
a chave está em Lisboa.
Eu num amo a outra gente
senão a vossa pessoa...
É possível que a cantiga originária prosseguisse, atendendo ao mesmo processo repetitivo, mas a informante só se lembra dessas três estrofes.
O mesmo encadeamento vamos topar numa velha oração popular, naturalmente para ser cantada, que nos deu outra informante, também empregada nossa, Maria Nunes Nascimento, natural de Defesa, no mesmo município de Cariacica. Diz assim a reza, que lembra, até certo ponto, as cantiguinhas do Padre Anchieta:
Divino José,
meu santo de todos,
da Virgem Santíssima
vóis fosse o esposo.
Vóis fosse o esposo
da mesma Senhora,
mais claro que o dia,
mais fino que a aurora.
Mais fino que a aurora,
vóis fosse meu santo,
da Virgem Santíssima
alcançasse tanto.
Alcançasse tanto,
Jesus também,
que nos dê a glória
para sempre, amém...
Diz ainda Segismundo Spina (op. cit., p. 406): “O artifício do leixa-pren [...] deve ter sua origem na poesia popular e mais tarde, como esta, adquirido foros artísticos e derivado para a poesia culta”, tese que outro medievalista de renome, Rodrigues Lapa, contesta, pois, a seu ver, o processo “foi conhecido pela poesia litúrgica e pela poesia médio-latina”. Mas, como bem acentua Spina, “a poesia popular [...] é anterior à hinologia cristã” (ibid., p. 407).
Isto significa, a nosso ver, que na raiz das cantigas trovadorescas – como de tantas outras produções cultas – está o popular, o tradicional, o folclórico. E se, nas cantigas populares de hoje se deparam (como vimos) alguns dos processos existentes na poesia culta medieval, o fato não é de estranhar: nestas últimas há o mesmo conteúdo popular que se encontra naquelas, o que, em síntese, quer dizer: o que era do povo ontem continua do povo hoje, graças àquela “santa continuidade” de que nos fala Eugênio D’Ors.
In: COLETÂNEA DE ESTUDOS E REGISTROS DO FOLCLORE CAPIXABA: 1944-1982 - Guilherme Santos Neves
[Em http://www.estacaocapixaba.com.br/folclore/coletanea/coletanea_68_presenca_leixapren.htm]
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